Este texto não se coaduna com uma leitura superficial nem ideias preconcebidas. Muito menos tem um juízo de intenção. O que procura fazer é enquadrar o debate sobre a crescente pressão política contra os “não vacinados” no combate à Covid-19, quando os olhos estão postos na tão ansiada fase endémica.
Por todo o mundo habituámo-nos aos certificados digitais na gestão da vida quotidiana. Eles atestam quem entra, quando e como num vasto conjunto de espaços de lazer, cultura, educação e saúde. Caminhámos para os certificados 3G que englobam o comprovativo de vacina, de recuperação de doença ou da realização de teste. A ampla legitimidade que lhes foi atribuída é fácil de perceber: as pessoas conservam a autonomia sobre a sua esfera individual, o que foi uma vitória particularmente importante à saída da fase dos confinamentos gerais. Compete às pessoas escolher se querem ou não entrar; se aceitam ou rejeitam a vacina; se fazem ou não fazem teste.
Contudo, o avançar do tempo trouxe dúvidas sobre o futuro dos certificados 3G. Em rigor, estas dúvidas não são consensuais no panorama internacional. Na Dinamarca, Suécia ou Suíça, os certificados permanecem tal como estavam. Noutros países, incluindo Portugal, Alemanha ou França, as opções dividem-se entre certificados 2G (comprovativo de vacina e de recuperação da doença) e 2G+ (comprovativo de vacina com reforço e de recuperação da doença). Dependendo dos casos, os certificados 2G e 2G+, tanto substituem como coexistem com os certificados 3G, em função de determinados espaços (instituições de saúde, bares, discotecas, restaurantes).
Os certificados 2G e 2G+ representam a primeira de duas estratégias para pressionar os “não vacinados”. A pressão visa aumentar a adesão à vacinação. Nos países onde há maior hesitação vacinal, a tal autonomia que permite às pessoas optar pela testagem em detrimento das vacinas está a pressionar os sistemas de saúde, sobretudo no quadro da variante Ómicron. Acrescem os custos da política de testagem massiva, a dificuldade de mobilização contínua de infraestruturas e profissionais e a pegada ecológica. Também a crescente pressão para abdicar da testagem massiva em alternativa aos rastreios típicos da gripe através de redes-sentinela.
A segunda estratégia de pressão aos “não vacinados” é por via da vacinação obrigatória. A Áustria foi o primeiro país europeu a aprová-la enquanto o debate vai crescendo na generalidade dos países.
A vacinação obrigatória suscita reações imediatas, daí a necessidade de um melhor enquadramento desta medida. Tenta resolver o precedente criado pelos certificados digitais. Diferenciar os cidadãos no acesso a espaços coletivos quotidianos não tem paralelo em regimes democráticos e em tempo de paz. Além disso, obriga a que os cidadãos assumam o papel de porteiro ou polícia de outros cidadãos. Tudo isto é questionável do ponto de vista constitucional, daí o entendimento de respeito pelo princípio da igualdade através da obrigatoriedade das vacinas.
Há ainda que considerar que a vacinação obrigatória não abre precedentes. Por isso, é imprudente considerar esta opção como uma súbita tendência repressiva dos Estados sobre as liberdades individuais. Campanhas de vacinação obrigatória contra o sarampo, a poliomielite, a rubéola ou o tétano existiram e existem com resultados positivos no controlo de surtos e na coesão social. Mesmo na gestão da Covid-19, a vacinação já é obrigatória para diversos grupos ocupacionais: profissionais de saúde (Grécia, Itália, França, Hungria), professores (Itália, Nova Zelândia, Canadá), trabalhadores de lares/residências (Itália) ou forças de segurança (Itália, França).
Mas esta medida deve sempre ser enquadrada como a última opção entre a literacia, o diálogo e o incentivo. Apenas deve ser implementada quando a hesitação vacinal é comprovadamente o principal motivo de ameaça à saúde pública, para doenças com elevado potencial de disrupção do funcionamento das instituições e quando a vacina é o melhor método de controlo de doenças. Mesmo assim, deve ser procurado o maior consenso social e político possível e sempre com base na transparência da informação.
A dúvida é clara: tornar uma vacina obrigatória não coloca dilemas éticos? Claro que sim, mas assegurando os pressupostos acima enumerados, não pode uma minoria ruidosa comprometer o esforço de uma maioria vigilante, mas cooperante.