Nas mais diversas cinematografias, o género documental tem tido alguns desenvolvimentos ligados à recuperação de materiais de arquivo que, pelas mais diversas razões (acidentais ou intencionais) permaneceram esquecidos durante décadas. Por vezes, o reencontro com esses materiais pode dar origem a espantosos objectos de cinema — é o caso de “Funeral de Estado”, do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, agora editado em DVD (esteve na edição de 2020 do IndieLisboa).
Trata-se, neste caso, de trabalhar a partir das imagens oficiais do funeral de Josef Estaline (1878-1953), recolhidas pelo departamento de propaganda da URSS. Sabemos, historicamente, que as formas de repressão postas em prática pelo estalinismo envolveram sempre uma celebração do seu líder como figura sagrada e intocável — o chamado “culto da personalidade”. Concentrando-se apenas nas cerimónias ligadas ao funeral de Estaline, o filme mostra, afinal, como os mecanismos desse “culto” marcaram também o adeus oficial ao seu líder.
O trabalho de Loznitsa é tanto mais surpreendente quanto evita recorrer às formas mais convencionais de abordagem das memórias históricas (não encontramos aqui, por exemplo, a tradicional voz off que “explica” os acontecimentos filmados). Na verdade, apenas através de uma montagem eminentemente didáctica, “Funeral de Estado” consegue desmontar os mecanismos de encenação e propaganda de todo um aparato social e simbólico — estamos, enfim, perante um dos exemplos mais extraordinários da vitalidade do género documental ao longo deste nosso século XXI.