Em Junho de 2019 escrevi o texto que podem encontrar mais abaixo para um espaço no Expresso Online. Tinha como título “O banco mundial do Facebook”. A empresa que gere a rede social mudou de nome para Meta. Anunciou a venda da tecnologia do consórcio criado para fazer a cibermoeda LIbra e a carteira Calibra que entretanto mudaram de nome para Diem e Novi.
Já a mudança de nome da Libra me pareceu uma das frequentes tentativas do Facebook para lavar a cara, como frequentemente faz quando as coisas não correm de feição aos planos de Mark Zuckerberg.
Logo em 2019, a União Europeia deixou bem claro que não via a iniciativa com bons olhos. Desde então, os jornais americanos citam com frequência opiniões, muitas de decisores, sobre as linhas vermelhas que era necessário estabelecer, mesmo nos Estados Unidos.
Ao longo do ano passado, foram muitos os sinais de que os atrasos iam ser mais do que isso, a culminar na estrondosa demissão de David Marcus, o executivo responsável com a missão de lançar a Diem e todo o sistema que a sustentaria.
Por uma vez. os decisores, sem terem que decidir grande coisa, viram o risco ser grande demais. Um banco central privado, com regras ditadas internacionalmente por empresas com objetivos que não são sequer devidamente escrutinados, é demais.
Não sendo um defensor da forma como o dinheiro funciona neste mundo, não acredito de todo que melhorasse com uma instituição assim. O mercado atual já é um casino muito pior do que a bolsa de valores, em que se perdem ou ganham fortunas porque um “influencer” demasiado seguido decide publicar uma piada num tweet. Só que por detrás do que se perde e ganha, ou antes, do dinheiro que muda de mãos, há vidas reais. Isto não é um jogo de computador em que se conquistam territórios e se constroem castelos sem sangue real.
Mark Zuckerberg parece ter uma visão da sociedade próxima disso. O espectáculo de desenhos animados com que exemplificou a sua visão do Metaverso (vai existir, mas vai ser outra coisa) não me parece muito saudável. No Second Life, uma espécie de universo virtual e paralelo, percebemos que a vida real acaba por se sobrepor a tudo. E tal como aconteceu com o Second Life em tempos, tenho a certeza que Zuckerberg sonha com uma economia paralela, com a sua própria moeda, onde empresas e pessoas reais estarão dispostas a gastar muito dinheiro em troca de pouco ou nada. Já mostrou que quer vender roupinhas virtuais, que não aquecem ninguém, e terrenos onde o que cresce não serve de alimento, e ganhar mesmo muito com tudo isso. Temos pouca memória e raramente decidimos de forma consciente em relação ao futuro da sociedade, desta vez funcionou, mesmo que temporariamente. Tenho pelo menos a esperança que a memória do Second Life possa travar um pouco a especulação exagerada que já vejo em torno da visão de Mark Zuckerberg para o Metaverso.
Nota – Como é sabido os sites da SIC e do Expresso perderam, temporariamente, a memória num vergonhoso e cobarde ataque informático. Por isso, em vez do link como seria normal deixo aqui o texto que escrevi em Junho de 2019, na esperança de que a Libra e a Calibra tivessem o fim que agora se oficializa.
O banco mundial do Facebook (publicado em Junho de 2019)
Isto de lhe chamar cibermoeda tem muito que se lhe diga. Claro que a Libra, a moeda virtual que o Facebook quer lançar para o ano que vem, é uma cibermoeda no sentido em que é dinheiro que existe na Internet, nos computadores, depende da tecnologia, no caso pelo menos parcialmente, de blockchain. Mas tem pouco que ver com o conceito de cibermoeda a que nos habituámos, goste-se ou não, as cibermoedas têm sido criadas para serem livres do “sistema”, podemos ver isso do lado bom, da liberdade individual, ou do lado que tem de facto sido o mais comum, lavagem de dinheiro, especulação selvagem, comércio ilícito, podem continuar a lista…
O Facebook, com a sua coligação de 28 empresas – não há mais capitalista que este conjunto de companhias – lança então uma moeda que cavalga esta ideia de liberdade, mas avisa que não vai servir para especulação, diz que é sobretudo para os pobres que nem têm acesso a contas bancárias e que vai começar pelo Whatsapp, Messenger e Instagram onde eles vão poder fazer transações e transferências na nova Libra, ao que parece. Sou só eu que vejo aqui uma ligeiríssima contradição?
O Facebook cria uma entidade central, muito simbolicamente centrada na Suíça, que vai servir de entidade independente de governance da Libra, se isto não é um Banco Central privado, o que é? E um Banco Central privado de um país com 2,4 mil milhões de cidadãos, nada mal. Não admira que se proponham fazer transações a preços irrisórios em relação aos praticados no mercado, se a coisa pega será uma das maiores cash cows algumas vez imaginadas, não estou a esquecer que é feito para os pobrezinhos, é com eles, que são muitos, que se consegue mais dinheiro, basta ver o exemplo dos impostos.
Para já, garantem que as transações de cada um não serão usadas para outros fins, nem sequer para publicidade direcionada. Claro que vamos todos acreditar que o Facebook, a Visa, Mastercard, a marca de venda de produtos de luxo nascida em Portugal a Farfetch, a Uber, a Lift e por aí fora só estão a pensar na nossa privacidade. Sem ironia, agora até podem estar. Mas a história ensina que estas coisas mudam. Só como exemplo, no sistema de créditos sociais na China, em alguns casos, os gastos mais ou menos sensatos do cidadão já contam para a pontuação. O cidadão pode ficar mais ou menos bem visto, ganhar ou perder direitos em função de muitos parâmetros mas esse, é um deles.