Ato 1
A passagem dos dias foi mostrando o contrário, muito pelo interesse de jornalistas, sindicatos, ordens profissionais e pela oposição política. Afinal, dias antes tinha-se dado o fatídico óbito de um recém-nascido cuja associação a este problema está sob investigação. Era óbvio que a intensidade do escrutínio ia ser brutal.
Ato 2
O debate público inundou-se de episódios, ora antigos ora recentes, de chefias que pediram demissão, de profissionais a escusa de responsabilidade, de listas de espera que aumentaram e o recurso a horas extraordinárias a um ritmo disruptivo. Tudo isto envolvendo outros hospitais e centros de saúde, mas também outras profissões e muitas especialidades médicas.
Ato 3
António Costa percebeu o erro, mas o tsunami estava criado. A solução passou pelo anúncio de um plano de ação com medidas de curto e médio prazo, entre as quais aumentar o pagamento das horas extraordinárias e o número de profissionais, garantir o funcionamento em rede dos cuidados e pensar numa nova rede de referenciação para a saúde materna e obstetrícia. O que era inesperado, circunscrito e circunstancial passou a estrutural.
Ato 4
A argumentação de Marta Temido no parlamento não convenceu apesar do que disse ser verdade. A dimensão estrutural deste problema apenas pode começar a ser resolvida com a aprovação do novo estatuto do SNS. É esse o ponto de partida. Esta peça jurídica funciona como a partitura com que o maestro guia a orquestra. Repito: se o problema estrutural estava aqui não se percebe o silêncio sobre este assunto desde o início e, já agora, o que impede a conclusão deste processo.
Ato 5
Mas a falta do novo estatuto do SNS não explica tudo. As causas destes problemas são profundas e longas.
Por isso, as duas perguntas que se impõem agora são: o governo está interessado em reformar o SNS? E se sim, tem a força política para o fazer?
Ponto um: esta necessidade está muito bem identificada, pelo que já não basta aumentar o orçamento do SNS – como tem sido aumentado – nem contratar mais profissionais – como têm sido contratados.
Ponto dois: ter maioria absoluta conta pouco neste assunto. Em certo sentido, a governação da saúde terá sido mais fácil a António Costa durante a geringonça do que será daqui em diante. Digo-o porque a retórica de defesa do SNS que une o espectro político português colide com ações políticas irreconciliáveis. Onde está essa fratura? No interior do PS, por isso também, é ao PS que compete orientar o rumo a seguir.
Ato 6
Os sindicatos dos médicos expuseram esta ferida e só os próximos tempos mostrarão até onde o governo quer e pode ir, pelo menos com este ministério da saúde. Era óbvio que o plano de curto e médio prazo desenhado à pressa para conter danos seria insuficiente. Basta conhecer a estratégia da negociação sindical para o saber de antemão. O que passou a estar em cima da mesa é a (necessária) revisão das carreiras profissionais, a qual vai implicar nos modelos de financiamento e governança dos prestadores do SNS e o modo de permitir a relação público-privada. Cá está a necessidade de pensar a arquitetura do sistema de saúde no seu todo. E isto não contando que não deve faltar muito para os demais sindicatos do setor virem a terreiro.
Ato 7
O governo está numa fase nova da governação e isto é particularmente verdade para Marta Temido. A ministra emergiu durante a geringonça para acalmar os parceiros que, entretanto, deixaram de o ser. Note-se que Marta Temido era das poucas ministras que ainda não tinha sentido o sabor da contestação nas ruas. Agora está sob o fogo cruzado da esquerda e da direita. É a ministra mais popular do governo, saiu por cima da pandemia e deu uma votação expressiva ao PS em Coimbra nas eleições legislativas. Mas a história mostra bem demais que esta pasta não se governa por muito tempo com a desconfiança do setor e a descrença na capacidade de liderar as reformas necessárias. Só António Costa sabe até onde quer ir e Marta Temido se tem a força para o fazer. Será penoso não ser a pessoa certa no lugar certo.