O Presidente da República afirmou, esta terça-feira, que os "valores personalistas e humanistas" da Constituição "são irrenunciáveis e inegociáveis", numa reflexão sobre mudança de valores sociais e "modismos" favoráveis a recuos nos direitos.
Esta foi a última de "cinco reflexões muito breves e diretas" que Marcelo Rebelo de Sousa fez no encerramento da sessão solene de abertura do ano judicial, no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa.
"Quinta e derradeira reflexão: os valores sociais mudam e a democracia define-se por respeitar e cultivar essa mudança e o pluralismo da sua expressão. E a mudança tem sido, felizmente, em inúmeras circunstâncias no sentido de mais e melhores direitos", declarou.
O chefe de Estado prosseguiu: "Mas se a mudança for no sentido oposto, se a moda for na opinião pública do instante for na senda de recuo desse Estado social de direito? E se essa moda se ampliar aqui e ali por fenómenos de reação emotiva ou de contestação sistémica a outros setores da comunidade?".
"Devem a legislação, a administração e depois a justiça necessariamente acompanhar ou mesmo acelerar essa mudança, só porque haveria que encontrar fórmulas jurídicas à medida de alegada alteração de cultura cívica, antes se dizia de mentalidade?", interrogou.
Marcelo Rebelo de Sousa disse que "há quem sustente que sim" e que há "vários exemplos" disso dentro e fora da Europa - que não mencionou, falando sempre em termos gerais e abstratos - e considerou que esta é uma questão importante "sobretudo para a justiça, desde logo a justiça material".
"A resposta cabe a todos e a cada um de nós. Mas a Constituição dá-nos balizas, guiões, roteiros, quadros de valores gerais e abstratos sobre o Estado democrático de direito e toda a sua substância e respetivos corolários", acrescentou.
Perante a "alegada mudança de cada instante, o modismo", o Presidente da República defendeu que "o que importa é a vivência dos valores como os constitucionais, que refletem a vivência de valores inerentes à dignidade da pessoa e ao seu respeito".
"Falar em justiça começa por aí, com ou em ventos de feição na conjuntura. Nesta abertura solene do ano judicial, perante vossas excelências, ilustres responsáveis da justiça portuguesa, vale a pena reafirmar que os valores personalistas e humanistas, valores esses fundamentais que a Constituição se quis e deve querer ser portadora, são irrenunciáveis e inegociáveis", afirmou.
As propostas de Marcelo
O Presidente da República propôs que se repense as orgânicas, procedimentos e recursos do sistema de justiça, através de uma abordagem global que, no seu entender, exige, "ao menos implícitos, consensos vastos de regime".
"A justiça com perspetiva de longo fôlego é porventura incompatível com algumas orgânicas ou procedimentos ou recursos humanos, financeiros e materiais concebidos para outra sociedade, outra economia, outra vivência cidadã", considerou o chefe de Estado.
Assinalando as mudanças ocorridas em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que "o que mais se impõe é ir olhando para todo o edifício judicial e quanto a ele ir detetando o que já não corresponde aos novíssimos desafios de uma comunidade mais aberta, mais internacionalizada" e também, "em contraponto, fruto das crises, mais dualista, ou seja, menos coesa, mais assimétrica".
Segundo o Presidente da República, para assegurar acesso "ao bem coletivo chamado justiça sem constantes e como que inevitáveis chocantes desigualdades" é preciso "ir repensando jurisdição comum e administrativa e fiscal, ir tornando mais flexível e ajustado todo o sistema, ir aproximando o seu tempo do tempo social".
"Ir criando mecanismos de monitorização permanente, ir estabilizando formas de comunicação com a sociedade, ir proporcionando recursos, e desde logo os humanos adequados às mais prementes necessidades. Pela própria natureza do poder judicial e pelas dificuldades e riscos da conjugação com a intervenção do poder executivo, esta abordagem global não é nem simples nem fazível sem ao menos implícitos consensos vastos de regime", acrescentou.