Forçados Amadores

Os 3 Kim

Não há dia que passe sem que haja um rumor relativo à Coreia do Norte. A explicação é simples: pouco ou nada se sabendo (ou duvidando-se do que se sabe) sobre o lado norte da Península Coreana, a especulação emerge como a realidade possível ou como possível realidade.

Os 3 Kim
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Diariamente fomos e somos confrontados com informações relativas a exercícios militares, testes com mísseis balísticos, progressos nucleares, desaparecimentos misteriosos, seja entre o povo, seja na estrutura do próprio partido único, ao estado de saúde da liderança do atual líder norte-coreano. A mais recente especulação diz justamente respeito a Kim Jong-un, ausente da vista há dias demasiado longos, alegadamente em estado grave depois de uma intervenção cirúrgica de foro cardíaco. Como nas história tradicionais, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e há quem sugira que o líder estará em estado vegetativo. Pyongyang apressou-se no desmentido, não avançando, ainda assim, qualquer explicação plausível para o “recolhimento” do jovem herdeiro da dinastia Kim.

Esta foi alvo de vários documentários subordinados a um único tema – a ascensão sem queda dos Kim; desde logo, Kim Il-Sung, o fundador da pátria norte-coreana, do seu filho Kim Jong-il e do filho deste e atual governante absoluto (à semelhança dos anteriores) Kim Jong-il. Estes documentários podem e devem ser vistos no canal da National Geographic, em episódios que estreiam normalmente ao fim-de-semana (repartidos por sábado e domingo), pelo que, em direto ou gravados, são garantia de um tempo não apenas bem passado como extraordinariamente útil para conhecer um pouco melhor aquele que foi chamado de “rogue regime” que, em tradução lata, significa um “regime do mal”.

Também a Netflix disponibiliza matéria documental televisiva sobre a Coreia do Norte. Desde logo, permito-me destacar o incrível “The Propaganda Game”, retrato surpeeendente assinado pelo espanhol Álvaro Longoria, com acesso alargado (mas dentro dos limites, claro) ao universo da capital norte-coreana, muito graças ao outro trunfo deste trabalho: a figura desconcertante de Alejandro Cao de Benós que, oriundo de família espanhola aristocrática, é provavelmente o ocidental mais bem cotado na hierarquia política do país dos Kim – é membro honorário do Partido dos Trabalhadores e do Exército do Povo. É, igualmente, o principal divulgador e auto-intitulado representante de uma suposta organização designada por Associação de Amizade Coreana. É extraordinário o discurso deste espanhol que “adotou” a Coreia do Norte como seu país, e a ideologia dos Kim como baseada no pacifismo e na paz mundial. A qualidade estética e técnica das imagens é deveras invulgar no que a filmagens da Coreia do Norte diz respeito. É uma obra a ver sem hesitação.

Em matéria de literatura, há alguns títulos disponíveis entre nós, indicados para curiosos ou até estudiosos do fenómeno do regime mais misterioso do mundo. Num desses títulos fica o alerta a lembrar que Walter Mondale, antigo vice-presidente dos Estados Unidos e ex-embaixador daquele país no Japão disse um dia que quem se julgar perito em assuntos da Coreia do Norte ou é louco ou mentiroso. Também por causa deste secretismo, que acabou por me fascinar pessoal e profissionalmente, aqui recomendo a agradável leitura de “Coreia do Norte – Estado de Paranóia”, do experiente autor, colunista e ensaísta Paul French. Presença habitual em títulos como o The Guardian ou The Washington Post, o britânico brinda-nos com uma narrativa particularmente rica em factos, detalhes e curiosidades que nos dizem, entre outras coisas, existirem 51 graus de hierarquia na sociedade norte-coreana, sendo que na prática são 50, uma vez que o primeiro lugar cabe a uma só pessoa: o líder. A leitura aprazível revela ainda a existência de um Ministério do Vestuário(!), bem como a regra de se usar um pin na lapela em que, consoante a faixa etária se seleciona a figura representada. Só há três escolhas: Kim Il-sung, Kim Jong-il ou Kim Jong-un. Claro que o livro vai (muito) mais longe na análise à história e à sociedade norte-coreanas, pelo que a leitura é um misto de surpresa, horror e perspetiva do que foi, é e poderá vir a ser a política de Pyongyang.

Mais focado na personalidade do atual líder norte-coreano está “O Grande Sucessor”; escrito por uma jornalista perita em assuntos asiáticos, o livro contitui, até ao momento, a mais completa biografia do enigmático e mais recente governante da dinastia Kim. Quem assina este trabalho a todos os títulos notável, quer em termos narrativos, quer em termos de conteúdo – é Anna Fifield, atual chefe da delegação do Washington Post em Pequim, depois de ter desempenhado idêntica função em Tóquio. Cruzando informações de várias fontes, incluindo próximas da liderança norte-coreana, a jornalista por seis vezes viajada até Pyongyang percorre as origens históricas, políticas e dinásticas do jovem líder da nação encarada com um “adormecimento” demasiado longo até se robustecer como ameaça cada vez mais real para a região e para o mundo.

Curiosamente, o grau de desconfiança para com a Coreia do Norte aumentou consideravelmente com a entrada em funções da Administração Trump. “Estão bem um para o outro”, pensarão muitos, mas a verdade é que, entre gritos, ameaças e uma aproximação inédita ao nível de Chefes de Estado, a liderança de Kim Jong-un já deixou a sua marca, nomeadamente no que respeita a testes e progressos no domínio do nuclear. Uma das principais razões para tal facto tem tanto de irónico quanto de trágico: o Grande Sucessor tem deixado viver mais tempo os cientistas e responsáveis pelos programas nucleares e de Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBM) do que os familiares que o precederam...