Revista do Ano 2019

Manel Cruz: por fim, a paz

Em 2019, Manel Cruz lançou o muito aguardado disco a solo, embarcou numa nova digressão com os Ornatos Violeta e fez música para cinema. Tudo com uma refrescante leveza de espírito

Manel Cruz: por fim, a paz

Tempos houve em que perguntar a Manel Cruz – um dos mais adorados músicos da sua geração e da sua cidade, o Porto – quando é que voltaria a reunir os Ornatos Violeta gerava no mínimo um certo desconforto.

Cutucar a memória de uma banda que se tornou grande depois do fim não agradava a um artista que, como todos os bons criadores, prefere olhar para o futuro do que para o passado. “A verdade é esta”, contextualizou este ano, em entrevista à BLITZ. “Não interessa o que fizeste, isso não te vai alimentar para a frente. Vai alimentar o teu ego, mas se te sentes mais criador do que músico… um músico tem de criar”.

E criar foi o que Manel Cruz fez, sempre com saudável inquietação, nos dez anos que mediaram o fim dos Ornatos Violeta, em 2002, e o primeiro regresso da banda aos concertos, em 2012, para uma passagem simultaneamente épica e intimista pelos coliseus de Lisboa e do Porto, com paragem ainda no festival Paredes de Coura e nos Açores.

Pluto, Supernada e Foge Foge Bandido ocuparam Manel Cruz durante o primeiro pousio dos Ornatos Violeta. Depois desse comeback benfazejo, ladeado pelos seus companheiros de sempre, o silêncio.

“Estive perdido, sim. Mas queria continuar a brincar e a ser infantil e comecei a sentir necessidade de mexer na massa”, confessou, também à BLITZ, quando na primavera deste ano lançou “Vida Nova”, o seu aguardado e tão adiado primeiro disco em nome próprio.

O processo não foi pacífico e implicou tanto suor como inspiração. “Fiz muitas músicas em horário de função pública; começava às 8h e acabava às 16h. Fazia uma por dia: era uma espécie de imposição minha. E pensei: ‘se nestes quatro meses não produzir nada, vou dedicar-me a outras coisas’”.

Foi com a canção ‘Como um Bom Filho do Vento’ que a “depressão criativa” se começou a dissipar e Manel Cruz pensou: “Ainda é possível. É como quando tiras muitas fotografias e reconheces uma que é boa. Que depois acabou por ficar no início do disco”.

Passados alguns meses, e depois de uma temporada intensa de concertos a solo e com Ornatos Violeta, o portuense olha para o álbum com outro distanciamento. “Escolhi as canções dentro do conceito de ter um disco que fosse suave. Não me apetecia ir à cara, apetecia-me contemplar e até exorcizar aquele medo do mole. Não ter medo da água”.

A nova tranquilidade contaminou o seu raio de ação em 2019. A solo, assinou sucessivos brilharetes nos contextos mais díspares: vimo-lo cantar canções de ninar, completamente sozinho, num auditório em Carnaxide, antes de, no dia seguinte, dar um concerto de rock à moda antiga – com a banda que há anos o acompanha – em Almada.

O Manel poeta e sensível, o rockeiro libidinoso, o artista desejoso de improvisar: todas as peles se congregaram em harmonia, ao longo do ano, mostrando um performer em paz com o seu passado, sequioso de tragar o presente.

“Chegas ao fim [do concerto] e não interessa o que as canções são”, disse à BLITZ no final do ano. “O que interessa é se as pessoas conseguiram mergulhar no momento”. Com esta paz de espírito e renovada humildade, Manel Cruz encarnou da forma mais fogosa um novo regresso dos Ornatos Violeta – que, 17 anos depois do “fim”, deram por si a tocar em salas enormes como o Pavilhão Rosa Mota ou o Campo Pequeno – e lançou os dados para uma nova digressão a solo, em 2020, desenhada para teatros e auditórios. “É para comer tudo”, convida, numa digressão à qual chamou Tour Nedô.

Pelo meio, o homem que este ano celebrou 45 primaveras recuperou várias pérolas do seu cancioneiro como Foge Foge Bandido (e criou alguns inéditos) para a banda-sonora do filme “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, cujo onirismo artesanal lhe assenta como uma luva. Tudo com a leveza de espírito de quem parece ter, por fim, ouvido a “recomendação” da sua própria canção (‘Borboleta’, de 2008): “E tu pensas que não mas tu és mesmo bom a ser sempre quem és”.

Bem-vindo a ti.