Experimente ler o título, com o devido sotaque brasileiro. Só assim vai perceber o tom imperativo de “Cálice”, a canção-protesto de Chico Buarque e Gilberto Gil, que se tornou um dos mais famosos hinos de resistência a um regime que silenciava a liberdade. "Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano”.
Haverá forma mais bonita de calar a censura, do que pô-la a dançar sem querer?
Consigo vê-la zangada, de braços cruzados, com a testa franzida e o lápis azul partido no bolso, a tentar contrariar o corpo, que sem dar conta já balança desengonçado ao som da música. É natural que a censura não goste do Chico. Teve de o ouvir sempre às escondidas.
Diverte-me imaginar Jair Bolsonaro, às escuras, num gabinete do Palácio do Planalto, com a porta trancada, a ouvir Chico Buarque.
Primeiro a bater o pé, contrariado, nos versos que dizem que ele “é da cachaça, mais do que do amor”. Depois, a trautear baixinho um “Deus lhe pague”, de um povo que agradece por poder respirar e existir. A seguir, já entusiasmado, a fazer as vezes do Tom Jobim, no dueto de “Sabiá”. Mesmo antes de acender a luz e destrancar a porta, já desinibido, a cantar “a coisa aqui ‘tá preta”, no refrão de “Meu caro amigo”.
É bastante provável que isto nunca tenha acontecido. É natural que Bolsonaro não goste do Chico apoiante do PT, defensor de Lula da Silva e crítico feroz do atual Governo.
Não supreende que não queira assinar o diploma de consagração de Chico Buarque como vencedor do Prémio Camões 2019. Quando o nome foi anunciado, o Presidente brasileiro deixou passar uns meses até atirar um displicente “até 31 de dezembro de 2026, eu assino”. O premiado não podia ter ficado mais contente com o desdém. Chico diz que sem a assinatura do Chefe de Estado é um duplo prémio Camões.
Dispensa a rubrica de um Presidente que declarou “guerra contra o marxismo cultural”. Que ocupou as principais instituições culturais com apoiantes. Que incentivou um sistema de censura prévia em vários centros culturais, que exigem saber o posicionamento político dos artistas.
Em 2019, Chico não brindou o mundo com disco novo - ainda que o belíssimo “Caravanas”, de 2017, ainda toque repetidamente nas nossas playlists e nas nossas cabeças - mas deu-nos um novo romance. “Essa Gente” é uma espécie de comédia trágica de costumes, com o Brasil atual como pano de fundo, em que um escritor bloqueado observa com ironia “o colapso em seu redor”.
É evidente que o Prémio Camões 2019 não distingue só o Chico dos livros. Cada canção de Chico Buarque é muito mais do que um poema que dança. Há canções que têm livros inteiros num verso. (Já se deram ao trabalho de ouvir, mas ouvir mesmo, cada palavra de “Construção”? É só um incrível exemplo, de tantos outros, em que Chico escreveu daquela vez como se fosse a última.)
Num palavreado cuidado, digno de diploma para emoldurar, o júri do Prémio Camões explica que a obra de Chico é multifacetada e contribui “para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Aplaude um trabalho que “atravessou fronteiras e que se mantém como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”.
Bonito isso. Mas não chega. Faltou dizer que o Chico nos abraçou sempre com canções-romance e romances-canção. Que teve sempre a fineza de desinventar a tristeza, que ele próprio inventou. Que nos ensinou que nada é para já e que o amor não tem pressa e pode esperar. Que a saudade é o pior tormento. Que é inútil dormir, que a dor não passa. O júri esqueceu-se de dizer, que pela lei do Chico, eramos todos obrigados a ser felizes. E que por descuido ou poesia, ele quis sempre ficar.
Chico Buarque vem a Portugal receber o Prémio, no próximo ano, no dia 25 de abril. Faz tanto e todo o sentido premiar, no dia da Liberdade, o homem que pôs a censura a dançar às escondidas.
Este Natal, “Cálice” seria uma boa música para oferecer a Jair Bolsonaro. Mas enquanto escrevo as últimas linhas deste texto, toca outra que é capaz de ser ainda melhor. “Apesar de você, amanhã há-de ser outro dia”. Em que podemos todos continuar a ouvir o Chico.
O Presidente brasileiro não assina por baixo? Cálice, então.