No dia 18 de fevereiro fiz anos. Dois dias antes, tive o prazer de ser convidada pelo município onde nasci para a Entrega das Bandeiras Verdes, e apresentada à comunidade escolar e sociedade civil como “jornalista e cientista em alterações climáticas”. Na minha festa de aniversário, quem melhor me conhece perguntou: “mas que cena é que tu estás a fazer, mesmo?”. Como alguém habituado a atirar a nomenclatura para o ar (há já muito pensada para situações destas, e em que precisamos de etiquetas), respondi o costume, enquanto me preparava para contabilizar os segundos de silêncio que normalmente se seguem: “estou a acabar o doutoramento em estudos da ignorância” – disse.
E se porque a maioria das pessoas prima pela boa-educação, e há que se lhes dar tempo para se recompor e reagir, com os amigos não há etiqueta. As gargalhadas não se fizeram esperar, e alguém concluiu, sarcasticamente: “então andas a estudar para não saber nada, portanto?”. Eu ri-me, porque a definição, para além de ter tanto de verdadeiro como de ridículo, era o melhor resumo possível do meu currículo. Confirmei que sim, e relembrei-os de que, como meus amigos, já deveriam saber com o que contar.
Afinal, se a maioria discutia os desafios da sua checklist (como ter carro, habitação, aliança, bebé, empréstimo ao banco e outras “devoções sociais”) o meu propósito era ter como profissão “a busca da verdade” – não trocara ciências e tecnologias por comunicação na licenciatura à toa. Queria descobrir aquela verdade que me permitisse dar sentido ao mundo de doidos em que nasci, e conhecer-me a mim mesma, como cliente de um hospício em crise climática, pobreza global, pandemia e guerra. Afinal, todos o queriamos fazer, porém havia quem optasse por fazê-lo através de viagens, (p/m)aternidade, ou comprando um “bom” carro.
À parte dos meus amigos, contudo, a mim tinha-me falhado um pormenor. Não percebendo a tamanha falta de humildade e eteriedade dos meus objetivos de vida, foi necessário que chegasse ao doutoramento para que, ironicamente, aprendesse que a única verdade absoluta é a de que quanto mais se sabe, mais conscientes da nossa ignorância nos tornamos. E que (tenho levado especialmente mais tempo a aprender esta parte) ser-se especializada em não saber é um conhecimento cada vez mais útil e prático.
Afinal, nas sociedades modernas, a ignorância é tipicamente pensada como “a ausência ou o oposto do conhecimento”, e como conhecimento e poder são sinónimos há que eliminar a ignorância a todo o custo, seja através da educação ou do acesso à informação. Contudo, parece costume que todo o homem redescubra a sua ignorância algures no seu processo de vida. Mais cedo ou mais tarde, parece que todos sucumbem, pelo menos, a uma crise existencial… seja ela provocada por uma rescisão de contrato profissional, uma doença ou a morte de um ente querido. Nesses momentos, a dúvida entranha-se e perguntamos quem somos, onde estamos, de onde viemos e para onde vamos. O questionamento existencialista, varrido para debaixo do tapete pelas obrigações do dia-a-dia, aparece sem que prevamos, e o sentimento de ignorância faz-nos sentir meros grãos de areia no imenso cosmos.
Eu simplesmente escolhi transformar a ignorância em profissão e especialidade académica.
“Os ignorantes estão cheios de certezas, e os inteligentes cheios de dúvidas”
Se na manhã de dia 24 de fevereiro a mensagem mundial era: “A Guerra começou”, depois de dois anos em pandemia e os avisos de fim do mundo da crise climática, não é de condenar que, apenas quando a incerteza nos bate à porta de casa (ou da nossa rotina), a verdadeira angústia se instaure. Afinal, a incerteza parece stressante e impossível de controlar, da mesma forma inconsciente que a raiva e o medo. E, como tal, a única forma de relaxar é dar o mundo e a vida por certos, mesmo que estes se façam de incertezas (Kampourakis, McCain, 2019). Apesar da dúvida ser inerente à natureza da ciência (T. S. Kuhn, 1970; Popper, 1961), muitos jornalistas evitam, frequentemente, referi-la, e retratam as descobertas científicas como mais certas do que realmente são (Retzbach & Maier, 2014. Uma vez que as massas, em geral, parecem ter uma visão mítica da ciência como uma fonte infalível de certeza absoluta (Kampourakis, McCain, 2019) e a comunicação de ciência parte do pressuposto que existe uma “partilha de ciência com não especialistas” (Rakedzon et al., 2017) ou “públicos não técnicos” (Sharon e Baram-Tsabari, 2014), quem comunica almeja maximizar a simplicidade para as audiências mais leigas, para evitar posssíveis efeitos negativos (Stocking, 1999).
Como consequência desta sociedade moderna onde a incerteza é vista como uma ameaça (e a ignorância como limitação) surgem fenómenos, como o Post-truth (conceito que já expliquei em outros artigos publicados na SIC Notícias – Ribau, 2021). O Efeito de Dunning-Kruninger é outro exemplo, e define que aqueles com menos conhecimento sobre determinado assunto são os que maiores certezas apresentam sobre os temas. Sentem-se mais confiantes em defender um ponto de vista específico, e consideram-se melhores que os especialistas. O fenómeno deriva da homenagem aos dois professores de psicologia americanos, David Dunning e Justin Kruger, que o propuseram, em 1999, e nele podemos incluir – por exemplo – os leigos em epidemiologia, que sabem a fórmula mágica para acabar com o covid-19, ou o youtuber que, sem qualquer base de astronomia, prova que a Terra é plana.
Por outro lado, temos o Síndrome do Impostor. O fenómeno afeta, normalmente, pessoas que acumulam enormes quantidade de informação e conhecimento, e que colocam em causa o seu próprio saber e legitimidade, enquanto profissionais ou pessoas. Constantemente avaliados e testados em ambientes competitivos, os indivíduos mais inseguros e sensíveis a críticas e falhas, deixam de acreditar no que sabem e questionam todas as suas ações e proposições.
Assim, por um lado, temos que ter um mínimo de conhecimento sobre um tema para estarmos cientes da nossa própria ignorância e identificar as nossas dúvidas e lacunas. Por outro, saber gerir a incerteza e a ignorância como elementos evolutivos, para não entrar em depressão e ansiedade na busca do excesso de perfecionismo. Como Bertrand Russel disse, um dia, em tom provocatório – “ o problema é que os estúpidos estão cheios de certezas. E os inteligentes cheios de dúvidas”. E, embora todos acreditem no ideal de uma verdade definida como revelação de uma investigação rigorosa e unânime, é obsoleto basear a formulação de políticas racionais numa autoridade científica indiscutível, visto vivermos numa sociedade pluralista de conhecimento (Heinrichs, 2005).
Nas últimas décadas, e como campo interdisciplinar de estudo por excelência, estudiosos das ciências sociais, humanidade e ciências naturais e exatas têm vindo a questionar a definição de ignorância como “oposto do conhecimento e poder”. Autores de várias áreas exploraram o papel produtivo da ignorância na manutenção dos regimes políticos, desenvolvendo casos práticos como a ciência climática, a saúde global ou a governança económica que mostram que a ignorância é um recurso vital na vida social, política, científica e existencial. Desde os debates sobre o número de mortos durante a guerra no Iraque e nos esperados pelo conflito entre a Rússia e a Ucrânia, às causas profundas da crise financeira e estratégias para diminuir a pobreza no Banco Mundial, é possível entender que, tanto poderosos quanto marginalizados, aproveitam ativamente a ignorância, de formas inesperadas, para atingir os seus objetivos.
A teoria das duas culturas
Ao extrair contribuições da economia, sociologia, história, filosofia, antropologia, ciências naturais, exatas e outras, os estudos da ignorância têm que enfrentar o que Charles Percy Snow (1939) caracteriza de “Teoria das Duas Culturas”. O autor destaca que a vida intelectual está dividida em intelectuais literários e cientistas e que não há praticamente comunicação entre eles. Mais do que mostrarem grande ignorância relativamente à área em que não são especialistas, os intelectuais mostram também orgulho em não acompanhar o trabalho uns dos outros. Snow destaca que um cientista não está preocupado em ler Shakespeare, tal como um intelectual literário também não faz questão de entender a segunda lei da termodinâmica. Ironicamente, Descartes defendia que não se deveria desperdiçar palavras em exercícios filosóficos, visto que não é necessário uma sabedoria do autoconhecimento, mas sim a procura da verdade certa e poder absoluto. No entanto, não percebeu que precisou de criar um demónio (o conhecido “demónio de Descartes”, que questionava a realidade por completo) para concluir que “penso, logo existo”, tal como o filósofo Sócrates afirmou: “só sei que nada sei”. Enfrentando a sociedade teocêntrica da altura, e originando as bases da sociedade científica atual, Descartes duvidou de tudo para, posteriormente, encontrar na ciência a forma de banir a dúvida, e nomear a razão como forma de categorizar e dicotomizar a realidade em verdadeiro/falso, certo/errado (de uma forma tão totalitária, por vezes, como o Deus da sociedade teocentrista onde nasceu). Esta busca levou-nos ao sonho cartesiano da certeza e utopia científicas, vivido na modernidade (Ravetz, 2015). Setenta anos depois de Percy, Ragnar Fjelland (2002) alerta para a mesma questão, e salienta a importância de que humanistas e cientistas reconheçam que a complementariedade é fundamental para fechar a lacuna entre as duas culturas polarizadas.
Atualmente, a flexibilidade curricular, estimulada (exemplo) no ensino, permite questionar se esta teoria, afinal, se tornou obsoleta, e se no século XXI podemos ter esperança no que diz respeito ao diálogo interdisciplinar. Estudos atuais (2021), que analisam a organização das comunidades de arte-ciência europeias e a investigação inter e transdisciplinar desenvolvida, revelam que o problema das “duas culturas” persiste e ainda se verifica uma falta de compreensão mútua entre artistas e cientistas, sendo que o “peso” da especialização educativa e das estruturas departamentais académicas continuam a criar uma “divisão cultural”.
Muitos líderes (que nestes tempos têm vindo a ser auto-nomeados entre políticos, cientistas, ativistas e, inclusive, influencers) estão cientes da sua realidade confusa, mas raramente passam muito tempo a refletir sobre o que estão a fazer. Com base em insights das ciências da complexidade, sociologia de processos e filosofia pragmática, Chris Mowles envolve-se diretamente com algumas das principais contradições da vida organizacional em relação à inovação, mudanças de cultura, conflitos e liderança, e argumenta que os líderes seriam mais eficazes se começassem a perceber que a vida organizacional é inerentemente incerta e as interações entre as pessoas são complexas e paradoxais.
Há que saber tudo…
Neste mundo complexo, a pandemia é apenas um dos exemplos mais presentes em que a gestão da ignorância se revela fundamental. Veja-se, como exemplo, a crise de legitimidade sofrida pela Organização Mundial de Saúde que após ter afirmado que o uso de máscara não era necessário teve de mudar de posição. Embora quem esteja no comando saiba que nem sempre está no controlo, espera-se que os líderes e gestores procedam como se pudessem prever o futuro, com base em conhecimento linear e factual.
Apesar do desejo humano por certezas ser inerente (Kampourakis, McCain, 2019, a complexidade é álgo com que as ciências da natureza como a física a e a biologia estão habituadas a lidar. E poderão ajudar-nos a transitar para uma nova política da incerteza, mas também de abertura e aprendizagens coletivas (Innerarity, 2021). Ao invés de buscar a certeza onde ela não existe, é melhor aprendermos a valorizar a incerteza e aprender a viver e lidar com ela. A educação pode desempenhar um papel importante aqui. Mas é necessária uma grande mudança que educaria as pessoas a compreender e lidar com o risco e a incerteza (Kampourakis, McCain, 2019).
Estudos de Rabinovich e Morton (2012), por exemplo, destacam que os participantes que tinham um conceito de ciência como “discussão” foram mais motivados por maior (em vez de menor) incerteza nas mensagens de mudança climática. Os resultados sugerem que alcançar o alinhamento entre as crenças do público em geral sobre a ciência e o estilo das mensagens científicas é crucial para o sucesso da comunicação de risco na ciência. Consequentemente, em vez da incerteza minar a eficácia da comunicação científica, a incerteza pode aumentar os efeitos da mensagem quando se ajusta ao entendimento do público sobre o que é a ciência. E, mais do que isso, evitar os fenómenos de polarização vividos, e a crise da verdade atual.
Sendo assim, meus amigos, (em especial os da minha festa de aniversário), espero que entendam um pouco mais sobre as “cenas” que ando a fazer, e sobre o que ando a estudar para não saber. Afinal, saber que não se sabe é a base de todo o conhecimento e, assim como eu me vi confrontada com a ignorância na minha busca pelo saber, também vocês, como qualquer um de nós, encontra(m/ão) cada vez mais dúvida e risco nos vossos caminhos, seja em instituições como o “Emprego”, “Casamento” e “Família” ou “Governança” do nosso país.
A organização da realidade do nosso dia-a-dia é repleta de incertezas, contradições e paradoxos. Contudo, e perante tal certeza da incerteza, os estudos da ignorância permitem torná-la construtiva, natural e uma ferramenta fundamental no nosso dia-a-dia. O uso estratégico do não saber é um campo cada vez mais estudado e, a mim, parece-me cada vez mais o caminho na minha busca pela definição de “verdade” (não houvesse verdade mais absoluta do que o facto de que a verdade é relativa).
Afinal, “estamos em guerra, amigos.” A sair de uma pandemia. No meio da crise climática. A descobrir que a (p/m)aternidade não tem instruções, nem a vida receitas e checklist’s de felicidade garantida. Afinal, somos todos doutores em ignorância.
TRADUÇÃO:
“-Hobbes, olha! Está um pequeno guaxinim no chão!
-Está vivo?
-Eu acho que sim, mas está ferido. Vês, está a respirar com dificuldade.
-Melhor não lhe mexer se está magoado.
-Sim. Tu esperas aqui e tomas conta dele. Eu vou a correr buscar a mãe.
-Eu espero que ela consiga ajudar.
– Claro que consegue. Tu não podes ir para mãe se não conseguires consertar tudo perfeitamente!”