Para os que acompanharam o Festival de Cannes de 1992, uma das maiores e mais desconcertantes surpresas terá sido a atribuição da Câmara de Ouro (melhor primeiro filme) a “Mac”, realizado e protagonizado por John Turturro, exercício simpático, mas inapelavelmente convencional, sobre três irmãos novaiorquinos a tentar montar uma empresa de construção civil…
Porquê a surpresa? Porque foi, de facto, um ano de várias e surpreendentes longas-metragens de estreia, incluindo uma que, rapidamente, encontrou um lugar especial na história e na mitologia do cinema da década de 90: “Reservoir Dogs”, entre nós lançado como “Cães Danados”, com assinatura de um ilustre desconhecido chamado Quentin Tarantino. Em qualquer caso, lembremos que, dois anos mais tarde, Tarantino iria inscrever o seu nome na galeria de honra de Cannes, arrebatando a Palma de Ouro de 1994 com “Pulp Fiction”.
Passados 30 anos, vale a pena referir que a caracterização de “Cães Danados” como um “thriller” que transfigurou os modos de representação da violência está longe de bastar para compreendermos as suas singularidades. Desde logo, porque corremos sempre o risco de julgar que a palavra “violência” recobre uma zona temática perfeitamente transparente e unificada. Mas sobretudo porque, seja qual for o “conteúdo” de uma cena filmada por Tarantino (ou qualquer outro cineasta), importa conhecer e analisar a sua integração numa determinada narrativa.
Narrativa, justamente, será uma palavra chave para observarmos o impacto do trabalho de Tarantino no cinema das últimas três décadas. Assim, por um lado, com “Cães Danados”, ele assume-se como um directo e legítimo herdeiro de todo um capítulo da produção clássica de Hollywood enraizada na tradição literária e cinematográfica do “Noir” — recorde-se que, depois de “Pulp Fiction”, viria a realizar “Jackie Brown” (1997), baseado no romance “Rum Punch”, de Elmore Leonard. Ao mesmo tempo, por outro lado, com o seu hábil, por vezes desconcertante, modo de apresentar uma clássica história de crime, traição e vingança, “Cães Danados” pode simbolizar a ousadia criativa de um cinema realmente moderno, embora nunca alheio à riqueza do classicismo que herdou.
O lançamento comercial de “Cães Danados” ocorreu há 30 anos, nos EUA, ao longo do mês de outubro de 1992 (entre nós teria a primeira apresentação pública no Fantasporto, em fevereiro de 1993). E não podemos esquecer que, mesmo nas suas mais surreais soluções narrativas, o cinema de Tarantino nunca cedeu a qualquer tipo de formalismo, mantendo-se fiel ao valor — também ele clássico — do labor dos actores. Neste caso, será justo recordar os nomes dos oito actores que interpretam o “gang” que conhecemos logo na cena de abertura. São eles (na foto, da esquerda para a direita): Michael Madsen, Quentin Tarantino (várias vezes actor “convidado” nos seus próprios filmes), Harvey Keitel, Chris Penn, Lawrence Tierney, Tim Roth, Steve Buscemi e Edward Bunker.