Dois anos depois, a escritora Paulina Chiziane recebeu, o Prémio Camões 2021. O presidente do júri, Carlos Mendes de Sousa, lembra que Paulina Chiziane foi a primeira mulher moçambicana a escrever um romance e destaca: a reação da escritora ao prémio foi "um dos mais tocantes testemunhos". Já o primeiro-ministro cita a escritora para salientar a universalidade da língua portuguesa. Já Paulina Chiziane defende que a língua portuguesa, para ser de todos os povos que a falam, precisa de “tratamento, limpeza, descolonização”.
Na cerimónia de entrega do prémio, Carlos Mendes de Sousa realça que Paulina "escreve como fala" e que é na língua portuguesa que "reinventa o mundo":
"Foi um dos mais tocantes testemunhos de reação a um prémio".
O responsável lembra que foi a primeira mulher a escrever um romance em Moçambique e diz que a sua escrita é “transmissora de uma linhagem”, marcada por interrogações, enumerações e paralelismos.
“Paulina Chiziane religa os cantos ancestrais ao seu canto, religa o seu texto ao universo”, afirma.
A ministra da Cultura do Brasil não esteve presente, mas as declarações da responsável foram transmitidas por vídeo. Margareth Menezes faz, inicialmente, uma referência a Chico Buarque e destaca depois a importância da entrega do prémio a Paulina Chiziane.
“Para mim, como primeira mulher negra a assumir o ministério da Cultura do Brasil, também é muito simbólico e significativo vivenciar este momento em que pela primeira vez temos uma escritora negra premiada com Camões”.
Margareth Menezes destaca os “temas universais” da escritória, que contribuem para a partilha da cultura moçambicana.
“Foi nesta liberdade partilhada que nos reencontrámos”
Já o primeiro-ministro, António Costa, salienta que é a primeira vez que a cerimónia de entrega do Prémio Camões, “um símbolo maior de uma grande comunidade linguística”, acontece no Dia Mundial da Lingua Portuguesa e que, por isso, tem um “significado muito especial”.
“É uma língua que os seus povos usam para comunicar e, ainda que a falem com múltiplas variantes ou sotaques diversos, a falar se entendem e a entenderem-se conhecem-se”, afirma.
O primeiro-ministro cita a escritora moçambicana, segundo a qual Camões foi "um indivíduo para quem o mundo era a sua morada", para salientar a universalidade da língua portuguesa.
António Costa destaca “a força da tradição oral própria da sua cultura”: “Na sua obra, a língua ganha novas possibilidades, novas estruturas gramaticais, novas sonoridades, revelando uma expressividade linguística que não é dominante e uma liberdade criativa”.
Há 50 anos, nem em Portugal, que vivia em ditadura, nem em Moçambique, que vivia sob colonialismo, era possível falar ou escrever em liberdade, aponta o primeiro-ministro no seu discurso.
"Foi nesta liberdade partilhada que nos reencontrámos, que nos reencontramos e que seguimos. Paulina Chiziane faz parte dessa geração que viu na literatura um lugar de emancipação pessoal e coletiva e cuja criação literária corresponde a uma necessidade profunda de interpretar e representar a cultura do seu povo. Pioneira a vários títulos, foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique e é agora a primeira mulher moçambicana e negra distinguida com o prémio Camões", acrescenta.
Paulina Chiziane pede descolonização da língua portuguesa
A escritora moçambicana Paulina Chiziane defende que a língua portuguesa, para ser de todos os povos que a falam, precisa de "tratamento, limpeza, descolonização", dando como exemplo a maneira como algumas palavras surgem definidas nos dicionários.
Durante o discurso, Paulina Chiziane partilha que há na língua portuguesa "algumas especificidades" que fazem com que esta "por vezes" a "assuste".
A escritora deu exemplos de definições que encontra em dicionários de Língua Portuguesa para algumas palavras, como catinga, "que vem como cheiro nauseabundo característico da raça negra".
"Fico muito triste quando olho para aquilo. Será que tivemos tempo de olhar para estas questões?, diz.
Paulina Chiziane nomeia também matriarcado, que aparece definido como "costume tribal africano", em contraposição com patriarcado, "tradição heroica dos patriarcas".
"Em África temos matriarcado, sobretudo na região norte de Moçambique. É um costume tribal, deita fora, é coisa de africano. Mas patriarcado já tem valor. Que machismo é esse?", questiona.
A escritora partilhou ainda "uma última palavra, mas há muitas": palhota, "habitação rustica característica dos negros".
"Está provado que palhota é habitação ecológica. A língua portuguesa para ser nossa precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização", defende.
Paulina Chiziane, vinda "de lugar nenhum" e que "aprendeu a escrever na areia do chão" e usou "o primeiro par de sapatos com 10 anos", mostrou-se hoje "muito feliz" por receber o Prémio Camões, "um prémio tão importante, exatamente no Dia Mundial da Língua Portuguesa".
"Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prémio", diz.
Dos vários agradecimentos que fez, o maior foi para os seus leitores, "em Moçambique e em todos os países que falam português".
Paulina Chiziane
Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, Moçambique, em 1955. Estudou Linguística em Maputo. Atualmente, vive e trabalha na Zambézia. Ficcionista, publicou vários contos na imprensa. Publicou o seu primeiro romance, "Balada de Amor ao Vento" (1990), depois da independência do país, que é também o primeiro romance publicado de uma mulher moçambicana. "Ventos do Apocalipse", concluído em 1991, saiu em Maputo, em 1993, como edição da autora e foi publicado em Portugal, pela Caminho, em 1999, antecedendo "Balada de Amor ao Vento", em Portugal, pela mesma editora, em 2003.
A Caminho possui aliás os títulos da autora publicados em Portugal: "Sétimo Juramento" (2000), "Niketche: Uma História de Poligamia" (2002), "O Alegre Canto da Perdiz" (2008). Da sua obra fazem igualmente parte "As Andorinhas" (2009), "Na mão de Deus" e "Por Quem Vibram os Tambores do Além" (2013), "Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento" (2015), "O Canto dos Escravos" (2017), "O Curandeiro e o Novo Testamento" (2018).Instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, e entregue pela primeira vez no ano seguinte, o Prémio Camões é o galardão de maior prestígio da língua portuguesa. De caráter anual, presta homenagem a um escritor que, pela sua obra, contribua para o enriquecimento e projeção do património literário e cultural de língua portuguesa.
Prémio Camões
O Ministério da Cultura, através da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), organiza pela parte portuguesa a atribuição deste Prémio, que tem o valor pecuniário de 100 mil euros, assumido em partes iguais pelos Governos de Portugal e do Brasil. Nos termos do regulamento, Portugal e o Brasil organizam de forma alternada as reuniões e as cerimónias de entrega deste galardão.