Entre os filmes que chegaram este ano às salas portuguesas e, entretanto, já estão disponíveis em streaming, “Fairytale” (2022), do cineasta russo Aleksandr Sokurov, é seguramente um dos mais originais — no limite, também um dos mais inclassificáveis.
Os espectadores que conheçam um pouco da filmografia de Sokurov saberão que o seu trabalho sempre se interessou por figuras marcantes da história da humanidade. Não que ele faça exactamente biografias. Podemos até dizer que o seu cinema envolve uma permanente discussão sobre o que é isso de “biografar” e, nessa medida, o que significa aplicar os meios específicos do cinema para revisitar a memória plural das vivências individuais ou colectivas — lembremos apenas os seus filmes sobre Adolf Hitler (“Moloch”, 1999), Lenine (“Taurus”, 2001) e o Imperador Hirohito (“O Sol”, 2005).
Pois bem, “Fairytale” é um descendente directo desses filmes, até porque as formas de manipulação das imagens de vários dos seus projectos anteriores (incluindo os citados) atingem aqui uma dimensão inusitada, algures entre o anti-realismo e a dimensão poética — o seu método envolve, afinal, uma permanente interrogação das linguagens de que se faz a história.
O subtítulo português é sugestivo: “Sombras do Velho Mundo”. De que se trata, então? Numa paisagem figurativa que não esconde o seu artifício, algures entre a animação clássica e a prática ancestral da gravura, deparamos com uma galeria de personagens históricas que marcaram o século XX, com destaque para um quarteto: Hitler, Estaline, Churchill e Mussolini. Eles estão às portas do Purgatório e enfrentam a pesada herança de um tempo de muita violência e destruição…
Ao longo de vários anos, a equipa técnica liderada por Sokurov trabalhou sobre muitas imagens de arquivo para criar um genuíno “conto de fadas” (tal como diz o título) sobre as atribulações da história que geraram o mundo em que, agora, vivemos. Sendo um filme construído a partir de memórias de imagens e palavras, este é um conto surreal, ou melhor, uma fábula sobre os fantasmas históricos do nosso presente.