Cultura

Eunice Muñoz: a “mulher simples” que “só podia ser atriz”

Da estreia nos palcos, às peças “roubada” pela censura: a história de Eunice Muñoz.

Eunice Muñoz: a “mulher simples” que “só podia ser atriz”

A atriz Eunice Muñoz, que morreu esta sexta-feira, em Lisboa, aos 93 anos, nunca não se imaginou fora do teatro, apesar de sempre se ter considerado “uma mulher como as outras, mãe de seis filhos, com netos e bisnetos”. Com 80 anos de carreira, Eunice Muñoz, porém, é o teatro.

Sou uma pessoa como outra qualquer“, e gostava de ser lembrada assim, como uma “mulher simples”, embora não pudesse “deixar de ser atriz”, disse à agência Lusa, no passado mês de setembro.

Na altura, preparava o regresso aos palcos para mais um ciclo de representações da sua derradeira peça, “A margem do tempo”, do alemão Franz Xaver Kroetz, que interpretou com a neta Lídia Muñoz, em diferentes palcos do país.

Dez anos antes, quando assinalou os 70 anos sobre a sua estreia, as suas declarações tinham já a essência dessa vontade: ser lembrada como a pessoa comum que, no entanto, procurou “fazer sempre melhor”, pois “não podia ser outra coisa, só podia ser atriz”.

Eunice Muñoz só se afastou dos palcos em três momentos: dos 23 aos 27 anos, depois do nascimento da primeira filha, quando já somava uma década de trabalho e dezenas de personagens por si interpretadas; no final da carreira, em 2012; e entre 1972 e 1976, altura em que a televisão e a gravação de poetas portugueses ocuparam os seus dias.

As peças “roubadas” pela censura

De uma vida inteira no teatro – o seu “grande amor” – a única queixa de Eunice Muñoz prendia-se com a ditadura do Estado Novo e as peças que gostava de ter feito e que lhe “foram roubadas” pela censura.

Eu e toda a minha geração apanhámos efetivamente esse corte medonho, como quem tira um bocado duma perna”, disse Eunice Muñoz à agência Lusa em novembro de 2011, referindo-se à ditadura, que marcou 33 anos do seu percurso profissional.

Esse repertório proibido, fez muita falta“, prosseguiu então Eunice Muñoz, exemplificando com “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, que só interpretou em 1986, no Teatro Aberto, dirigida por João Lourenço, mas também com a “Cantora Careca” de Ionesco, que não consta do seu percurso. “E hoje olho para estes jovens com uma grande satisfação, porque, desde a Revolução, não sabem o que isso é, e ainda bem“, assegurou.

Nascida numa família de atores

Nascida a 30 de julho de 1928, na Amareleja, Moura, no distrito de Beja, numa rua que tem agora o seu nome, Eunice Muñoz descende de uma família de três gerações de atores – dos espanhóis Muñoz, no teatro, e dos sicilianos Cardinalli, no circo.

Aos cinco anos já realizava números musicais, na companhia teatral ambulante da família, a Troupe Carmo. Tímida, chegava a inventar dores de barriga para evitar as caras que olhavam para ela em palco, como recordou em diferentes entrevistas, recordando a sua “infância nómada”.

Fixou-se em Lisboa em 1934. Poucos anos depois, “sem saber como”, repararam nela e estreou-se em “Vendaval”, de Virgínia Vitorino, no Teatro Nacional D. Maria II, na então companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Foi em 28 de novembro de 1941.

Fazia de Isabel e a seu lado estavam atores consagrados como Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Maria Lalande, Lucília Simões, Raul de Carvalho, Alves da Cunha, João Villaret. Tinha 13 anos e viria a entrar pouco depois para a histórica companhia, ainda adolescente, onde teve como mestra Amélia Rey Colaço. “Senhora D. Amélia Rey Colaço”, como dizia.

“Eu era uma miúda e ela foi sempre uma pessoa maravilhosa para mim. Tinha por mim uma imensa ternura e eu, por ela, um respeito enorme e veneração“.

Aos 14 anos, pôde entrar para o Conservatório, de onde saiu aos 17, com o curso de Teatro e uma média final de 18 valores. Mas atuou, atuou sempre, como em 1943, na “Riquezas da sua avó”, ao lado de Palmira Bastos.

As coisas na minha vida foram sempre acontecendo“, disse à Lusa, em 2011. “Nunca mexi muito, nunca fiz grandes esforços para representar peças de que gostaria”.

“Sou muito pouco ambiciosa (…) Isso não me orgulha nada. Se fosse mais ambiciosa, provavelmente não teria ficado em Portugal, teria partido quando acabei o Conservatório. Nessa altura podia ter escolhido o estrangeiro para fazer uma carreira, mas não… Sou muita agarrada”.

Dos inúmeros palcos ao pequeno e grande ecrãs

Apesar de confessar que, no começo, nem sempre representou as peças de que gostaria – porque era muito nova e “não tinha poder para dizer que sim ou que não” -, admitiu que a vida profissional sempre “lhe correu bem”. Entre 1941 e 1944, interpretou 21 peças no D. Maria com a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro.

A estreia no cinema aconteceu em 1946, em “Camões“, de Leitão de Barros, que lhe valeu o prémio de melhor atriz. Na altura, entrou também em “Um Homem do Ribatejo”, de Henrique de Campos, que também a dirigiria em “Ribatejo” (1950) e “Cantiga da rua” (1955). O último filme em que entrou, “Olga Drummond”, de Diogo Infante, data de 2019.

Na sua carreira, porém, é o teatro que prevalece. Eunice Muñoz fez então parte da Companhia de Teatro Gynásio, em Lisboa, dirigida por António Pedro, e passou ainda pelo Teatro da Trindade, antes de se retirar de cena, entre os 23 e os 27 anos. Na televisão, aceitou o desafio de Nicolau Breyner e participou nas séries cómicas “Nicolau no país das maravilhas” e “Nico d’Obra”.

Afastada dos palcos desde 2012, regressou em abril do ano passado ao Auditório Eunice Muñoz, em Oeiras, para estrear “A margem do tempo”, com a neta, Lídia Muñoz, produção que levou a diferentes palcos do país, numa digressão que culminou no Teatro D. Maria II, em Lisboa, no passado dia 28 de novembro, o mesmo palco, onde exatamente 80 anos antes fizera a sua estreia.

Na altura, chegava às salas de cinema o documentário “Eunice, ou cartas a uma jovem atriz”, de Tiago Durão.

No seu percurso, no teatro, somam-se mais de 120 peças, em perto de três dezenas de companhias, segundo a base de dados do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que enumera mais de uma dezena de prémios ao longo da sua carreira.

No cinema e na televisão, o nome de Eunice Muñoz está associado a mais de 80 produções de ficção, entre filmes, telenovelas e programas de comédia. Ao celebrar os 70 anos de palco, numa entrevista à agência Lusa, confessou: “A minha luta é melhorar, melhorar, melhorar. A minha luta é essa mesmo. E nunca fico contente, fico sempre de pé atrás, porque, de uma maneira geral, não gosto de me ver”.

No entanto, “na repetição que é o teatro, mesmo quando pensava que ia ter mais uma representação, mais um dia, transformava esse dia numa entrega“, disse à Lusa, em 2021, pouco antes de cumprir os 80 anos de carreira. “E isso esteve sempre comigo, sempre, sempre”.

COM LUSA

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