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Rui Santos: Ciclo de Fernando Santos “terminou” mas ninguém quer e vai assumi-lo

Rui Santos lança um olhar sobre o desempenho do selecionador nacional. O comentador da SIC diz que é preciso ser grato pelo trabalho desenvolvido por Fernando Santos, acredita que é preciso uma mudança para tornar a Seleção mais ambiciosa, mas entende que ninguém vai tomar posição até ao fim do Mundial do Qatar.

Rui Santos: Ciclo de Fernando Santos “terminou” mas ninguém quer e vai assumi-lo
HUGO DELGADO

Sublinhei várias vezes a importância da chegada de Fernando Santos à FPF e à Selecção Nacional e creio que o País está reconhecido pelo trabalho que desenvolveu nos últimos quase 7 anos.

Ele harmonizou o ambiente, acabou com a saga dos vetados e, acima de tudo, no começo do processo, não deu qualquer hipótese de Cristiano Ronaldo sentir a mínima hostilização em seu redor.

Fernando Santos foi o estabilizador de Cristiano Ronaldo na Seleção Nacional.

A somar a tudo isto, Fernando Santos deu a Portugal o título mais importante da história do futebol nacional a nível de Selecções, mesmo considerando que esse título resultou de um conjunto de fatores (até o efeito Éder apareceu) e da exteriorização do — como dizer? — “futebol-poucochinho” e quase sempre ‘a medos’.

Se olharmos para o Euro-2016 e agora para para o Euro-2020 (em 2021), não obstante a melhoria qualitativa do conjunto de jogadores selecionáveis e à disposição do selecionador nacional, verificamos que, considerando apenas a hora e meia de cada jogo, Fernando Santos — num estilo sempre muito fechado — só conseguiu vencer o País de Gales, em 2016, e a Hungria, agora em 2021. Este facto não anula o mérito da conquista frente à França, num jogo que correspondeu a uma das consagrações mas também a um dos ocasos mais instantâneos da história dos Europeus, mas é um sinal das dificuldades de Portugal em projectar a imagem de uma afirmação indiscutível e eloquente.

Dir-se-á que Portugal é um país pequeno com uma Liga competitivamente frágil na sua globalidade e na vertente económico-financeira e que muito já fazemos, comparando a outras potências como a Inglaterra, Espanha, Alemanha, França ou mesmo Itália. No entanto, é bom ter a consciência de que Portugal foi um dos países que, face ao atraso patenteado durante muitos anos nos últimos vinte anos do século passado, mais mitigou a diferença para as grandes Federações/Seleções europeias e, hoje, as condições oferecidas a Fernando Santos nada têm a ver com aquelas que foram disponibilizadas a outros selecionadores.

Fernando Santos teve tudo: uma Cidade do Futebol (inaugurada em 2016), um conjunto vasto de jogadores afirmados ao mais alto nível das ligas europeias (o ‘fenómeno luso’ na Premier League não deixa de ser interessante), uma estrutura federativa totalmente sintonizada e uma relação com as Seleções ‘formadoras’ absolutamente pacificada e focada no objectivo de contribuir para o sucesso da Seleção mais representativa.

Fernando Santos teve aquilo que mais nenhum selecionador contou — e isso também deve ser considerado, a par de tudo o que o técnico nacional deu à Seleção, sempre com o apoio incondicional do presidente Fernando Gomes.

Apesar do diagnóstico estar feito — melhor selecionador do que treinador —, esse apoio de Fernando Gomes, a somar a este fenómeno que tomou conta do país, segundo o qual, pelo aumento descontrolado da oferta televisiva, com horas e horas de debate futebolístico, completamente desenquadrado da dimensão e proporção das realidades e necessidades sociais, ou há crítica acesa no plano das rivalidades clubísticas ou a crítica dilui-se na quantidade dessa oferta e começa a ser difícil achar quem se queira arriscar num ambiente controlado que também não lida muito bem com ‘independências’; apesar do diagnóstico, dizia, ninguém vai ou quer assumir que Fernando Santos já deu tudo o que tinha a dar à Seleção Nacional.

Fernando Santos não vai mudar: prefere jogar pela certa do que arriscar e acreditar que a sorte o vai acompanhar sempre. A sorte não dura sempre (como se viu, aliás, na segunda parte do jogo com a Bélgica) e quem tem recursos deve saber utilizá-los ao máximo e, sem um mínimo de risco, fica difícil afirmar potenciais supremacias.

Podes ter um Ferrari à porta, mas se não o souberes conduzir, podes ter muita gente a contemplá-lo e, se não tiveres unhas para ele, dificilmente ganharás corridas.

Ora Fernando Santos viu a estrada ser alcatroada, o piso é hoje ao nível das melhores estradas europeias, tens pneus para todas as jantes, um habitáculo de luxo, mas quando tens um piloto que não gosta de velocidades… mais valeria comprar e conduzir um utilitário.

O período de estabilização de Cristiano Ronaldo na Seleção também já passou, aquela vontade de ceder a tudo com esse objetivo também já foi ultrapassado e basta a Cristiano Ronaldo querer atirar a braçadeira de capitão para o chão, uma, duas, dez, vinte vezes, não há ninguém que lhe saia ao caminho — nem Fernando Santos, nem Fernando Gomes, ninguém — porque o processo foi desenhado assim: a perda de autoridade foi fomentada e, depois, consentida.

A Seleção passou a ser uma montra: é para olhar para ela, contemplá-la, elogiá-la, branqueá-la, se for preciso, mas sempre com um sentimento ou de alegria ou de conformismo. E isso nota-se pelas manifestações de afeto incontrolado, sejam de Ferro ou de outro ‘material’ qualquer — de facto, os políticos não sabem lidar com o Futebol. Precisam de se colar para sentirem a transpiração do êxito, quando ele acontece e, quando não acontece, atira-se para a próxima competição, que no caso vertente é esse inaceitável Mundial no Qatar manchado de sangue.

Como não me parece que Fernando Santos esteja predisposto a reconhecer que o volante da Seleção está a precisar de outras unhas e não haver ninguém capaz de encarar o facto de 2024 (final de contrato) ainda estar muito longe, vamos todos alegremente ‘a caminho do Qatar’ e, depois, logo se vê. “Com orgulho”, como diz Marcelo.

Há jogadores que têm de render muito mais na Seleção (como Bruno Fernandes e Bernardo Silva, por exemplo), outros há que já não acrescentam nada e ainda temos figuras em ascensão que precisam de espaço e estímulo para jogar, independentemente de estatutos ou influências ‘gestifúticas’.

A Selecção é para os melhores e o conceito serve também para os treinadores e não apenas para os seleccionadores, na FPF. Se pouco ou nada mudar — e é quase certo que não mude — vamos ter mudança de seleccionador no final de 2022 ou só mesmo em 2024. Talvez seja importante recordar, por isso, o pensamento de Giacomo Leopardi: “Do hábito da resignação nasce sempre a falta de interesse, a negligência, a indolência, a inactividade, e quase a imobilidade“.

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