Foi como alguém que fingia estar a dormir até que o barulho ensurdecedor obrigou a abrir os olhos. Já não dava para continuar debaixo dos lençóis. Já não dava para ignorar a realidade há muito conhecida por todos: o Chelsea foi alimentado, desde 2002, por um oligarca russo cuja sua fortuna vem de relações altamente privilegiadas, e nebulosas, com o governo de Vladimir Putin.
Até à guerra na Ucrânia, o futebol inglês, com a complacência do seu governo, nunca se importou de acolher investimentos com origem em ditaduras nas quais se violam os mais básicos direitos humanos. Uma ausência de moralidade que se estende à FIFA quando permite a realização do seu Mundial em locais como a Rússia (2018) ou o Qatar (a partir de Novembro deste ano), onde já morreram mais de 6500 trabalhadores migrantes, entre 2010 e 2020, na construção de infraestruturas para o evento.
Todos eles, agora, em uníssono, apresentam sanções contra as federações e atletas da Rússia. Mas todos, sem exceção, deixaram essas mesmas ações na gaveta quando Putin invadiu a Crimeia, em 2014, ou, antes disso, em 2008, fez o mesmo na Geórgia. Basta ver que enquanto a Crimeia era tomada pelas tropas russas, o Chelsea caminhava para nova conquista do campeonato inglês, com Abramovich a celebrar o troféu nas bancadas e no relvado de Stamford Bridge. Sem qualquer limitação, sem qualquer sanção, apenas com a glória do momento e o reconhecimento das instâncias políticas e desportivas do país. Ao mesmo tempo, em todo esse período, foi uma presença constante ao lado de Putin na promoção do Mundial de 2018.
A história de Abramovich no Chelsea aproxima-se agora do fim. Um fim à força que promete deixar o clube inglês bem longe da ribalta por onde tem andado. Mas é apenas para ele e outros oligarcas russos que têm investimentos no país. Está longe de significar que, daqui para a frente, haja maior escrutínio, moralismo ou ética na hora de deixar entrar investimento estrangeiro.
E aqui chegamos ao Newcastle. Em outubro do ano passado, o clube inglês foi comprado por um fundo ligado ao governo da Arábia Saudita, o qual é acusado pela Amnistia Internacional (AI) das mais variadas atrocidades: “Os regulamentos atuais sobre quem controla o futebol inglês estão incorretos e não proíbem proprietários que possam ter sido cúmplices de atos de tortura, escravidão, tráfico de pessoas e até crimes de guerra”, disse, em comunicado, Sacha Deshmukh, responsável pela AI no Reino Unido.
Nada que demovesse a Premier League. A venda foi autorizada e os adeptos do Newcastle encheram as ruas para festejar como se tivessem ganho um título. Esperam agora um período de glória semelhante ao que o Chelsea viveu durante o reinado de Abramovich.
Como diz o antigo campeão de xadrez Gary Kasparov, uma das vozes mais críticas da política russa e de Putin, “é habitual poder ficar do lado errado da história, conquanto se esteja no lado certo do oleoduto”. E essa tendência não acaba com Abramovich.