Os lordes britânicos estão muito céticos em relação ao programa de estímulos - conhecido no jargão financeiro como quantitative easing (QE) - que o Banco de Inglaterra (BoE) tem em curso e que já soma 40% do Produto Interno Bruto do Reino Unido.
"O QE é um perigo sério para a saúde das finanças públicas. Um plano claro de como o QE será descontinuado é necessário e esse plano tem de ser tornado público", concluiu um relatório da Comissão de Assuntos Económicos da Câmara dos Lordes do Parlamento britânico, agora divulgado, depois de uma investigação sobre se este tipo de estímulos monetários não se tornou "um vício perigoso".
A conclusão é que se tornou uma droga "com a escala do QE a ser aumentada repetidamente, sem quaisquer tentativas de a reverter". O relatório dos lordes de 62 páginas acrescenta que "se descobriu que os bancos centrais pelo mundo fora enfrentam riscos semelhantes", pelo que a conclusão negativa não é exclusiva para o BoE.
O banco central britânico registará, no final deste ano, uma carteira com 875 mil milhões de libras (mais de 1 bilião de euros) em obrigações do Tesouro britânico e 20 mil milhões de libras (€24 mil milhões) em obrigações de empresas, segundo as contas da comissão parlamentar. O que representa 40% do PIB britânico do ano passado, o que é superior aos 32% do PIB da zona euro que vale a carteira de títulos do Banco Central Europeu (BCE) detidos para fins de política monetária, ou seja, ao abrigo dos programas de aquisição de ativos lançados por Mario Draghi e Christine Lagarde.
Interdependência entre banco central e governo
Uma carteira tão elevada de títulos de dívida pública britânica "tornou aparente que o Banco de Inglaterra é largamente encarado como usando o QE para financiar os défices governamentais", apontam os lordes, que observaram uma "interdependência" muito forte entre o banco central e a política orçamental.
"As compras de obrigações revelam-se estreitamente alinhadas com a velocidade de emissão de dívida pelo Tesouro e se esta perceção continuar a crescer, de que o Banco está a usar o QE sobretudo para financiar as prioridades do gasto público, pode vir a perder a sua credibilidade como capaz de controlar a inflação e manter a estabilidade financeira", diz o relatório.
O que implica, acentuam os lordes, "a exposição do Banco de Inglaterra às pressões políticas para não subir as taxas de juro se a subida da inflação revelar não ser de curto prazo, como dizem as previsões do Banco".
O relatório cita as previsões do Office for Budget Responsability britânico - uma entidade de fiscalização independente similar ao Conselho das Finanças Públicas português - que apontam para um agravamento do custo de financiamento da dívida pública britânica em 0,8% do PIB por cada ponto percentual de subida nas taxas do banco central.
Os lordes concluíram ainda que "foi limitado o impacto do QE no crescimento e na procura agregada na última década" na economia do Reino Unido e que "há pouca evidência de que o QE aumentou os empréstimos que os bancos concederam, ou mesmo o investimento, ou os gastos no consumo por parte dos detentores dos ativos (dívida pública ou obrigações de empresas)". Pelo contrário, os estímulos monetários "aumentaram a desigualdade, subindo os preços de certos ativos, beneficiando quem os detém".
Juntar o 'verde' aos objetivos do banco central é mais um risco
O alinhamento do BoE com o combate às mudanças climáticas - tal como o BCE vai passar a fazer depois da revisão estratégica divulgada a 8 de julho - também deixa os lordes muito céticos.
O mandato do BoE foi aumentado oficialmente no sentido de apoiar a transição climática. Esta adição de mais objetivos, dizem os lordes, "arrisca-se a empurrar o BoE para a arena política e a perder o foco na sua responsabilidade primordial de controlar a inflação".
Os lordes concordaram com a ideia de que um banco central será tanto mais independente quanto mais restrito for o seu mandato, como ouviram do académico Daniel Gros, diretor do Centre for European Policy Studies sediado em Bruxelas, que foi consultado durante a investigação juntamente com outros académicos, jornalistas da área, ex-responsáveis de bancos centrais (nomeadamente do BoE, do BCE e do Banco do Japão) e firmas de investimento e consultoras financeiras.