Coronavírus

Brasil pode ter um número de infetados 15 vezes superior ao divulgado pelo Governo

Esta quarta-feira o Ministério da Saúde tinha registado 1736 mortes e mais de 28000 casos de Covid-19. Mas Carolina Lazari, médica responsável pelo laboratório de biologia molecular do maior hospital da América Latina, o Hospital das Clínicas, afirma que "os números do ministério são uma fotografia do passado".

Brasil pode ter um número de infetados 15 vezes superior ao divulgado pelo Governo
Rahel Patrasso

O relato é da correspondente da BBC na América do Sul. Em Vila Formosa, São Paulo, no maior cemitério da América Latina, os coveiros não têm mãos a medir. No final da semana passada abriam cerca de 60 covas por dia. Um número bastante acima do que era normal, garantem.

Manuel Pereira é um deles. Conta que o "o município já comprou 5000 sacos para os corpos, e contratou mais pessoas". O coveiro enfrenta agora regras apertadas no trabalho. No canto superior direito do documento que recebem sempre que preparam um enterro, surge agora um código: D3. Trata-se de uma morte, suspeita ou confirmada, por coronavírus, e isso implica usar fato de proteção completa, máscara e luvas.

Limitações que afetam também a quem faz o luto. As famílias não podem estar mais que uma hora perto do caixão, na capela. No máximo, 10 pessoas.

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Num canto do cemitério, um caixão é removido do carro funerário e seis homens, com o habitual macacão de proteção branco, caminham até a uma cova recém-escavada.

Maria Odete morreu aos 77 anos de idade por suspeita de coronavírus. A família cumpre a regra. Usam máscaras e respeitam o distanciamento social. Poucos abraços. Apenas àqueles que precisam. Uma pequena salva de palmas, e termina a cerimónia funebre.

"Estou realmente triste e preocupado com esta situação", lamenta o filho, Sandro Nunes. Confessa que nunca imaginou dizer adeus à mãe desta forma. "Eu não estava a levar isto muito a sério. Pensei que era a comunicação social que empolava as coisas. Só quando aconteceu com a nossa família entendemos a gravidade."

Pelo menos nas próximas duas semanas, a família de Maria Odete não terá certezas sobre se esta foi ou não uma morte causada pela Covid-19. Um cenário que se repete diariamente em todo o Brasil. Nos laboratórios do país, acumulam-se dezenas de milhares de testes. Simplesmente não têm capacidade para tal volume neste momento.

O Brasil testa pouco menos de 300 pessoas por cada milhão de habitantes . Nos Estados Unidos da América, por exemplo, esse número é de 9482 testes por milhão. E este é um dos maiores desafios que o país enfrenta - A dificuldade de importar quantidades suficientes de material para testes, numa altura em que os países de todo o mundo competem por eles.

A 15 de abril, o Ministério da Saúde tinha registado 1736 mortes e mais de 28000 casos de infeção por coronavírus. Mas Carolina Lazari, médica do laboratório de biologia molecular do Hospital das Clínicas, garante que "os números do ministério são uma fotografia do passado".

"Tudo o que vemos é a ponta do iceberg. No Brasil, testamos apenas os pacientes que vão ao hospital e ficam lá - os casos mais graves -, mas não sabemos como o vírus circula na comunidade".

"O Brasil não explodiu porque isso simplesmente não foi registado."

Os números do Registo Civil do Brasil mostram que houve um aumento de quase 10% de mortes por síndrome respiratória aguda em março, em comparação com o mesmo período do ano passado. Mas os especialistas temem que o número de vítimas de coronavírus não tenha sido incluído nas estatísticas nacionais.

Daniel Tabak, oncologista e hematologista responsável por uma campanha pelo aumento dos testes, acha que o país perdeu muito tempo na fase de preparação para a pandemia. O primeiro caso de contágio foi detectado no país em janeiro. E um mês depois as ruas encheram-se de milhões de pessoas para festejar o mundialmente famoso carnaval, sem qualquer preocupação.

"Durante algum tempo, acreditou-se que o Brasil não seria afetado", diz Tabak. "Houve falta de urgência e preparação na compra de kits de maneira mais proativa".

Sem a capacidade de testar em larga escala, os especialistas apontam para o distanciamento social como a sendo a única solução para travar o contágio. Mas essa esperança esbarra na postura do presidente brasileiro, que continua a desvalorizar a gravidade do vírus e a defender publicamente o regresso das pessoas ao trabalho.

Um discurso que vai contra a corrente, mas que é coerente com o comportamento de Jair Bolsonaro.
Ainda no último fim-de-semana, Bolsonaro juntou uma multidão de apoiantes, na capital, e chegou mesmo a limpar o nariz com a mão, antes de apertar a mão de uma senhora idosa.

"Isso tira a credibilidade do nosso ministério da saúde", diz Lazari. "Temos que pensar da mesma maneira e tentar tomar as mesmas medidas para retardar a propagação do vírus".

Com poucos dados disponíveis, alguns cientistas tentam desenhar uma estimativa do que possam ser os números reais. Há estudos que apontam para a possibilidade de haver até 313000 casos no Brasil - 15 vezes mais que o número oficial divulgado pelo Governo.

Para Daniel Tabak, há apenas uma maneira de ler as estatísticas: "O Brasil não explodiu porque isso simplesmente não foi registado."