Muitas mulheres que trabalham nos projetos médico-humanitários da Médicos Sem Fronteiras (MSF) tiveram de superar obstáculos para se tornarem líderes, incluindo estereótipos de género. E ainda assim destacam-se como agentes de mudança e vozes influentes na organização e nas suas comunidades, transformando perceções sobre as mulheres e garantindo que as suas vozes contribuem para que os programas da MSF sejam inclusivos e acessíveis a todas as pessoas.
Mais de 90 por cento dos profissionais da MSF são recrutados nos próprios países onde os projetos são desenvolvidos. Desde motoristas a supervisoras de enfermagem ou a coordenadoras de finanças, as mulheres líderes são fundamentais para concretizar o compromisso da MSF em prestar cuidados de elevada qualidade e centrados nos pacientes. Com a liderança das mulheres, a MSF consegue assegurar uma perspetiva mais diversa e equilibrada em todos os aspectos, desde a conceção dos programas à sua materialização no terreno e até à definição da direção da organização para o futuro.
A assinalar o Dia Internacional da Mulher em 2022, e com a inspiração dada pela diversidade e força individual de cada uma destas mulheres líderes, pediu-se-lhes que respondessem a uma pergunta: “O que podemos aprender convosco?” Estas são as suas respostas.
“Quando trabalhamos muito arduamente, de certeza que conseguimos”
Rebecca Lahai é mentora clínica na Academia de Saúde da MSF no hospital de Hangha, na Serra Leoa, um dos locais cruciais deste programa da organização médico-humanitária de formação no trabalho para profissionais de enfermagem. Antes de ser designada como mentora no ano passado, Rebecca Lahai foi também ela mentoranda no programa de cuidados clínicos em enfermagem da Academia MSF.
“Tornar-me enfermeira era o meu sonho desde criança. Admirei sempre as pessoas que punham os vestidos brancos. Lembro-me de quando a minha tia foi internada no hospital público e eu ia lá visitá-la. Vi como o staff médico tinha compaixão e empatia por ela. Senti-me inspirada por isso e disse que quando crescesse, de certeza que iria ser enfermeira – que é o que sou agora.
No hospital de Hangha comecei a trabalhar no centro de alimentação terapêutica em regime de internamento, onde tratamos crianças desnutridas, mas também onde prestamos educação em saúde e ajudamos a motivar quem se encarrega das crianças a ajudar os filhos a recuperarem sem atrasos, de acordo com o tratamento. É no centro que faço o meu trabalho de mentora clínica para a Academia de Saúde da MSF.
Há quase 30 profissionais de enfermagem e ainda assistentes de enfermagem nesta ala do hospital. O meu trabalho envolve dar mentoria a quem está a aprender, através de sessões teóricas e sessões práticas de desenvolvimento de competências, ajudar a fazerem uma melhor observação dos pacientes e identificar-lhes oportunidades de aprendizagem.
A Academia de Saúde da MSF é essencial para nos ajudar a ter cuidados de qualidade no hospital de Hangha. Juntos conseguimos reduzir as taxas de morte infantil e de morte materna. E podemos contribuir para grandes melhorias no processo de recuperação e cura dos pacientes.
Quando eu era mentoranda, estava sempre ansiosa por aprender mais. [Até hoje em dia], depois do trabalho vou para casa e tento ler algo. Em algumas sessões que nos são dadas como mentores tento analisá-las e ver no que posso melhorar. Tento pesquisar e uso um dicionário para aprender os significados de algumas palavras, para ser uma melhor mentora clínica. Tenho também o apoio do meu supervisor e dos meus colegas: é o espírito de equipa. Estas são algumas das maneiras com que desenvolvi perícia no papel que desempenho.
Para ser líder, a comunicação é fundamental: tanto oral como escrita. Por vezes podemos evitar usar a gramática formal ou o jargão e simplesmente explicarmo-nos em linguagem simples para ajudar as pessoas a entenderem. É preciso respeitar as outras pessoas. É preciso saber interagir. É preciso ser flexível. É preciso estar recetiva a aprender algo novo, e é preciso também encontrar maneiras de apresentar soluções. E temos de ser corajosas.
Como todos os outros seres humanos, não sou 100 por cento perfeita, por isso às vezes pergunto às minhas mentorandas como posso melhorar. Porque quero ter uma boa relação com elas – é algo que tem de funcionar em ambas as direções, e de forma cordial. Não podemos ser muito mandonas! Se interagirmos a um mesmo nível, as outras pessoas nem vão sentir a diferença de que sou a mentora.
A minha mensagem para outras mulheres como eu é serem determinadas e motivadas. Quando já definimos os objetivos para a nossa vida, não nos desviemos deles, independentemente dos desafios que tenhamos de enfrentar. Quando trabalhamos muito arduamente, minhas companheiras, de certeza que conseguimos.
Agora sou mentora clínica, por isso outras mulheres podem também sê-lo, como eu – ou talvez, até melhor do que eu! Há é que trabalhar para atingir esse objetivo.
“Vamos fazer isso juntos”
Rebecca Smith é responsável pelas atividades médicas da MSF no “Hospital da Colina” em Cox’s Bazar, no Bangladesh, que providencia cuidados de saúde a pessoas refugiadas rohingya que vivem nos 23 campos de refugiados daquele complexo. Rebecca Smith começou a trabalhar com a MSF quando era ela mesma refugiada, em fuga do conflito no seu país natal, a Libéria, e tendo encontrado refúgio na Costa do Marfim.
“O trabalho humanitário começou para mim quando era ainda muito nova. Em criança, os meus pais tomavam conta de órfãos, de outras pessoas, de crianças. Na nossa sociedade, na Libéria, toda a gente toma conta de alguém – por isso, cresci com essa ideia de ser humanitária, e abracei essa mesma ideia conforme fui crescendo e me tornei adulta.
A minha história remonta a 1990, quando a Libéria estava em guerra civil. Fugi para a Costa do Marfim como refugiada e lá ofereci-me como voluntária numa clínica, para pôr a uso as minhas capacidades como enfermeira de forma a ajudar outras pessoas que também tinham fugido. Ao fim de três meses, a MSF veio conversar connosco, numa altura em que a organização ia abrir um centro para tratar crianças desnutridas. A MSF precisava de profissionais de saúde e eu fui recomendada pela clínica. Após conhecer o coordenador de terreno da MSF e passar um teste fui contratada como assistente nutricional. Essa foi a primeira vez que trabalhei com a MSF.
Quando aquele projeto teve de encerrar devido ao agravar do conflito, a MSF deslocou o programa para o Sudeste da Libéria, bem perto da vila de onde eu era, e trabalhei com a organização no mesmo hospital onde tinha começado a trabalhar logo após a minha formação como enfermeira. A MSF renovou o hospital, que tinha ficado danificado durante a guerra, e três meses depois tornei-me supervisora naquele projeto.
Infelizmente, uma nova eclosão de rebelião fez com que tivéssemos de voltar à Costa do Marfim, deixando tudo para trás. Mas a MSF abriu outro hospital em Monróvia, a capital da Libéria, e quando eu estava no campo de refugiados recebi uma carta dizendo que a MSF estava à minha procura. Fui designada supervisora do departamento cirúrgico e trabalhei nesse hospital durante cinco anos.
Em 2010, tive a minha primeira participação internacional, num projeto no Iémen. Desde então trabalhei com a MSF no Sudão do Sul, na Nigéria e no Quénia. Regressei à Libéria durante a crise do ébola e, em abril de 2020, ajudei no trabalho de sensibilização das comunidades para a COVID-19 com a distribuição porta a porta de sabão para lavar as mãos. Durante a pandemia do coronavírus permaneci no meu país, à espera que a crise acabasse, e quando surgiu a oportunidade de trabalhar no Bangladesh, perguntaram-me se eu estaria interessada. E eu disse que sim.
Agora, no meu cargo atual, sou responsável pelos profissionais médicos, pelas atividades de enfermagem, pelos supervisores das equipas de enfermagem, pelo departamento de emergências, pela unidade de cuidados intensivos, pela ala geral do hospital, pela ala de isolamento e pelo laboratório. Faço a gestão dos supervisores em todas essas áreas e supervisiono a gestão geral do hospital.
Tenho desafios como líder – temos de ter desafios. Se não houver desafios, não vale a pena. Na liderança temos de ser pacientes, temos de ser capazes de tolerar algumas coisas e temos de ter bons ouvidos, capazes de ouvir bem.
Em alguns países, as mulheres são as últimas a ser ouvidas, ou não são ouvidas de todo. Quando chegamos a um local já numa posição de liderança é difícil, porque às vezes há pessoas que não fazem aquilo que lhes pedimos para fazer. Por vezes há uma atitude estereotipada – de que é suposto a mulher estar apenas num certo lugar, apenas a cozinhar. Temos de tentar romper com essa perceção.
Ser mulher e ser líder faz com que tenhamos de ser fortes face a estas dificuldades. Sei que no futuro as coisas serão melhores, mas este é um processo gradual. Temos de ser perseverantes, não nos devemos deixar desanimar, temos de fazer na mesma aquilo a que fomos chamadas para fazer. Viemos para ajudar – então, vamos fazer isso juntos.”
“É juntos que melhoramos as nossas capacidades”
Prunau Mimose Lector é supervisora de enfermagem no projeto de emergência da MSF no tratamento de queimados na cidade de Cap-Haitien, no Norte do Haiti. Extremamente experiente, Prunau Mimose Lector contribuiu igualmente para a resposta de emergência da organização médico-humanitária na ilha, que é pequena mas muito propensa a desastres naturais, e, mais recentemente, liderou uma equipa de cuidados pós-cirúrgicos na região Sul, a mais afetada pelo terramoto de agosto do ano passado.
“O meu trabalho é providenciar apoio às equipas de enfermagem, avaliá-las e garantir que prestam bons cuidados de qualidade no hospital, cumprindo os protocolos da MSF. Faço todos os esforços para liderar a minha equipa o melhor que consigo e em fazer bem o meu trabalho.
Ser líder significa ser capaz de gerir a equipa com sabedoria e seneridade mas também com pulso firme.
A minha equipa é muito colaborativa e isso é o que mais me inspira. É juntos que melhoramos as nossas capacidades. Digo-lhes sempre que temos o mesmo treino, mas níveis diferentes de experiência. Todas as pessoas têm de saber quais são os seus limites e os limites das outras pessoas, para que se possa avançar de acordo com o melhor interesse dos pacientes.
É aí que posso ter impacto, ao conseguir fazer o meu trabalho sem exercer o peso da autoridade. Quando chegamos a comunidades em circunstâncias de emergência, tentamos explicar o trabalho da MSF como uma organização não-governamental. Informamos quanto tempo a nossa ação vai durar, esclarecemos que não vamos ficar para sempre na comunidade, que os cuidados que prestamos são gratuitos e encorajamos as pessoas a aproveitarem os cuidados de saúde de qualidade que a MSF providencia.
No meu último projeto de resposta de emergência no terreno, em Les Cayes, após o terramoto, ao chegarmos a 23 de agosto, o Hospital Imaculada Conceção estava em sobrecarga. Crianças e adultos todos juntos. Havia pessoas a chegarem ao hospital passados já vários dias com ferimentos infetados. Olhei para a sala de urgências: estava virada do avesso. As pessoas encontravam-se em sofrimento. Havia sangue por todo o lado. Doeu-me fundo no coração.
A minha principal função era apoiar a integração das atividades da MSF no hospital do Ministério de Saúde Pública e População. Foi muito difícil fazer com que toda a gente no sistema de saúde percebesse o propósito de a MSF estar ali e aquilo que nos propunhamos a fazer. No sistema de saúde do Haiti, quem não tem dinheiro não tem acesso a cuidados.
Lancei mão da minha alma haitiana para os fazer compreender que os nossos conterrâneos e as nossas conterrâneas precisavam de ajuda e que a MSF estava ali para lhes prestar cuidados de saúde de qualidade e gratuitos. Para ajudar as vítimas que não têm acesso a este nível de cuidados se não forem gratuitos, simplesmente porque não os podem pagar.
Foi impressionante a forma como toda a gente uniu esforços, até voluntários locais que se disponibilizaram para trabalhar no hospital lado a lado com as equipas hospitalares. Todos trabalharam sem parar. Se não tivesse sido assim, o nosso trabalho teria sido muito mais difícil.
Fora do trabalho, sou uma mulher casada com dois filhos, uma rapariga e um rapaz.
Não creio que enfrente obstáculos específicos por ser mulher. É difícil alguém me desafiar por causa da minha personalidade – percebem facilmente que não sou uma mulher tão fraca como podem ter pensado. Acredito que seja o que for que qualquer outra pessoa consiga fazer, eu também sou capaz. Estou sempre pronta para superar qualquer situação.
O meu conselho para as mulheres é que se afastem dos clichés que retratam as mulheres como fracas em comparação com os homens, que tenham confiança em si mesmas, que acreditem nas suas capacidades e que sigam sempre em frente. Somos mulheres, claro, mas isso não deve restringir-nos. Temos de continuar a seguir em frente e seguir os nossos sonhos.”