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Yessica dá à luz numa ambulância depois de uma longa viagem de barco

O caso de Yessica Mosquera ilustra as sérias dificuldades no acesso à saúde que uma parte da população da Colômbia enfrenta. A organização Médicos Sem Fronteiras desenvolveu um projeto de assistência médica na região natural do Pacífico da Colômbia, onde os confrontos e restrições de circulação trazem problemas acrescidos.

Yessica dá à luz numa ambulância depois de uma longa viagem de barco
Natalia Romero Peñuela

Na berma de uma estrada acidentada, Yessica Mosquera deu à luz numa ambulância que a tentava transportar até Quibdó, departamento colombiano de Chocó, na região natural do Pacífico da Colômbia. Esta área é o lar de muitas comunidades indígenas e afrodescendentes, que enfrentam constantemente obstáculos no acesso a cuidados médicos, devido aos confrontos e às restrições de circulação.

Vinte horas antes, Yessica batera desesperadamente à porta da vizinha, María Mosquera, em Bocas de Apartadó, uma vila com uma forte comunidade de afrodescendentes na margem do Rio Baudó. As águas de Yessica rebentaram de forma inesperada, com dois meses de sobra até à data do parto e, naquele momento, sofria fortes dores abdominais. María, profissional de saúde comunitária capacitada pela Médicos Sem Fronteiras (MSF), aconselhou-a a seguir imediatamente para o centro de saúde, a uma hora de barco, em Pie de Pató.

Feito esse caminho, Yessica foi informada de que ia necessitar de cuidados hospitalares, o que implicou navegar o rio por mais duas horas até chegar a Puerto Meluk. A viagem não acabou aí, porém: ao desembarcar, foi transportada de ambulância até Quibdó, a capital do departamento de Chocó, numa viagem que durou quatro horas.

O bebé de Yessica nasceu com sinais vitais extremamente fracos, mas foi ressuscitado por um enfermeiro. Dezoito meses depois, é uma criança saudável. “A criança teria morrido se não tivéssemos encaminhado a Yessica”, sublinha María, sentada numa cadeira vermelha à porta de casa.

Todos na comunidade de Bocas de Apartadó conhecem María Daicy pelo trabalho que desempenha. É uma de 42 profissionais de saúde comunitária indígenas e afrodescendentes, capacitados pela MSF, para apoiar 133 comunidades onde as pessoas têm dificuldades em obter cuidados de saúde.

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É preciso sorte para conseguir ser atendido por um médico na sub-região de Baudó. É certo que as probabilidades aumentam durante o dia, já que à noite as pessoas evitam navegar o rio – a principal via de transporte numa região com poucas estradas – devido às ordens subentendidas de grupos armados (que negam ter emitido tais ordens). Mas as restrições de circulação são comuns: os dados da Provedoria Colombiana mostram que, em 2023, foram registados 124 episódios de ‘confinamento forçado’, que afetaram mais de 40.000 pessoas, que não podiam abandonar as aldeias onde vivem no departamento de Chocó.

Muitos moradores foram também vítimas de deslocações maciças. Além disso, a população local vive com a ameaça constante de sofrer desaparecimentos forçados, de pisar uma mina terrestre, ou munições não detonadas, enquanto que os profissionais de saúde têm também sido alvos de violência.

Para ser atendido por um médico, o atendimento será mais rápido se a necessidade surgir num período de chuvas – torna-se mais fácil navegar o rio e fazer uma viagem que pode durar entre três a 15 horas, até à vila mais próxima. Torna-se tudo muito mais fácil para quem possui um barco a motor, ou tem um amigo que esteja disposto a emprestar o seu, visto que nem todas as aldeias dispõem de um barco comunitário. Além disso, não existe qualquer tipo de ambulância fluvial para as cerca de 100.000 pessoas que vivem nas áreas do Alto, Médio e Baixo Baudó.

Todos estes desafios da vida quotidiana influenciaram o projeto da MSF nesta região, cujo foco é levar cuidados às pessoas que vivem nas comunidades mais remotas, com menos recursos, concentrando-se nos grupo étnicos que mais dificuldades enfrentam no acesso a serviços de saúde.

“Acreditamos que o nosso modelo de saúde deve ser descentralizado, baseado na comunidade e com um foco étnico, devido aos múltiplos efeitos do conflito armado, às lacunas significativas na prestação de cuidados de saúde e às condições geográficas da sub-região de Baudó”, avança o coordenador do projeto da MSF, Javier Mattos.

Costumes ligados à saúde, transporte e reforço dos serviços

O modelo da MSF tem três componentes essenciais. O primeiro é o conhecimento das perceções e costumes ligados à saúde das comunidades afrodescendentes e indígenas da área por parte das equipas da MSF. Dotados desse conhecimento, os profissionais capacitam pessoas dentro da comunidade, para ajudar a prevenir e a detetar doenças comuns atempadamente, quando ainda são fáceis de tratar.

“A maioria das consultas médicas que fornecemos está ligada à malária, diarreia, síndromes respiratórias e condições de pele”, explica a consultora médica da MSF, Johana Vinasco. "Todas essas doenças são evitáveis ou podem ser resolvidas com cuidados médicos básicos."

A MSF capacita os promotores de saúde a dar palestras sobre temas como preparação e armazenamento de alimentos de forma higiénica, uso de redes mosquiteiras e utilização de tanques de recolha de água, instalados pela MSF para fornecer água potável, limpa e segura às comunidades. As equipas providenciam também formações sobre o tratamento básico de doenças comuns, de modo a identificar sinais de alerta para encaminhar pacientes até centros de cuidados mais especializados.

O segundo componente é uma rede de referência que financia o transporte de pacientes para os centros de saúde, e lhes paga a alimentação durantes os dias em que têm de estar longe de casa.

Por fim, a MSF ajudou a reforçar os serviços nas instalações médicas para onde os pacientes são encaminhados.

Redução de taxa de mortalidade em menores de 2 anos

Nos últimos dois anos, o projeto descentralizado teve várias conquistas, incluindo a redução de complicações médicas graves entre crianças com menos de 5 anos – que compõem a maioria dos encaminhamentos – e a diminuição das taxas de mortalidade por doenças evitáveis entre menores de 2 anos.

De março de 2022 a fevereiro de 2024, profissionais comunitários de saúde capacitados pela MSF forneceram 9.985 consultas médicas e prestaram primeiros-socorros psicológicos a 72 pessoas. Organizaram também 2.097 encaminhamentos para centros de saúde, sendo 1.388 deles urgentes. Enquanto isso, os promotores deram 5.172 palestras sobre prevenção de problemas de saúde, alcançando 46.915 participantes.

Apesar de tudo isso, as dificuldades da vida quotidiana na região persistem. As restrições à circulação e as minas terrestres continuam a impedir as pessoas de chegar a centros de saúde e de encontrar comida suficiente. Há habitantes que não conseguem percorrer o caminho até às hortas que cultivam, assim como não conseguem pescar ou caçar, aumentando os riscos de desnutrição, especialmente entre as crianças.

Menos de dois médicos por cada 10.000 habitantes

O sistema de saúde existente tem também sérias falhas. "Para condições médicas que surjam inesperadamente – como lesões por trauma, acidentes e complicações no parto – os encaminhamentos precisam de ser realizados de forma urgente, mas estamos a falar de um sistema que é instável e ineficiente", expressa Vinasco.

A Organização Mundial de Saúde recomenda um mínimo de 23 médicos para cada 10.000 habitantes. A média colombiana é de 24, mas Alto Baudó tem menos de dois médicos para cada 10.000 pessoas.

Pessoas nas áreas mais remotas, podem levar um dia inteiro para chegar a um médico. Se forem necessários cuidados mais especializados, os pacientes não têm outra escolha senão deslocar-se até ao hospital de San Francisco de Asís, em Quibdó, e mesmo assim o atendimento não é garantido, visto que a instalação está em gestão e sob investigação há quatro anos. Além disso, alguns pacientes indígenas relatam ter sido discriminados por profissionais de saúde da unidade.

“Precisamos de um acesso reforçado a cuidados de saúde na sub-região de Baudó e o desenvolvimento de modelos descentralizados de atendimento com um foco étnico”, frisa Mattos.

Vinasco concorda, acrescentando: "O modelo comunitário é baseado nas condições reais da vida dos pacientes. Ajuda-os a recuperar a dignidade porque respeita as suas práticas de vida e fortalece o acesso a direitos básicos, como a saúde."