Esquecidos

Vozes de El Geneina: testemunhos de um conflito ignorado pela comunidade internacional

“Foi quando perdi a minha filha. No dia seguinte, mais violência: estava a caminhar na berma da estrada com o meu filho quando fomos parados por mais homens armados”, relata Nafissa, que fugiu dos ataques brutais em El Geneina. Mais de um ano depois do início do conflito no Sudão, a Médicos Sem Fronteiras garante a resposta que deveria ser dada por outras organizações humanitárias.

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Intensos combates entre as Forças Armadas sudanesas e as Forças de Apoio Rápido tiveram início a 15 de abril de 2023, em Cartum. Os confrontos espalharam-se rapidamente pelo resto do país e, desde então, mataram e feriram milhares de pessoas. No Sudão, a violência é contínua e vem na forma de combates urbanos, tiroteios e ataques aéreos.

Quando a conflito rebentou, a região do Darfur estava já dominada pela violência. No ano passado, por esta altura, a violência étnica no Darfur Ocidental levou a dois grandes massacres e a deslocações maciças de pessoas de El Geneina para o Chade.

O único hospital

Um profissional da Médicos Sem Fronteiras (MSF), que preferiu não ser identificado, partilhou a realidade de viver em El Geneina, ou a realidade de enfrentar diariamente um conflito grave.

“A violência foi de tal ordem que restringiu todos os movimentos que podíamos fazer”, descreve. “Nunca conseguiria garantir a minha própria segurança se saísse de casa.”

Este profissional fornece uma cronologia do Hospital Universitário de El Geneina, que é uma das infraestruturas mais importantes da região, visto ser a única instalação de saúde terciária numa área assolada constantemente por crises e conflitos.

“No início da guerra, o Hospital foi apanhado no meio dos confrontos e teve de ser encerrado. Quando a tensão começou a diminuir, os especialistas médicos locais convocaram uma reunião para discutir a reabertura do hospital. Eventualmente foi tomada a decisão de reabri-lo, em junho de 2023.”

“Eu estava a trabalhar autonomamente e a fazer tudo o que podia para manter o hospital a funcionar, e quando a equipa da MSF conseguiu retornar, percebeu que eu era um dos funcionários e nomearam-me como pessoa focal para muitos serviços. Eu nunca saí. É um dever”, sublinha.

Apesar de ter sido saqueado e ficado fora de serviço nas primeiras semanas da guerra, o Hospital Universitário de El Geneina continua a ser o principal hospital no Darfur Ocidental, atendendo tanto a população local, como pessoas deslocadas – principalmente, mulheres e crianças.

O trabalho da Médicos Sem Fronteiras

Nesta unidade terciária, as equipas da organização Médicos Sem Fronteiras fornecem cuidados ambulatórios e hospitalares e administram um centro de alimentação terapêutica para crianças gravemente desnutridas. De janeiro a maio de 2024, os profissionais da organização realizaram cerca de 23.000 consultas ambulatórias.

A desnutrição não é novidade no estado do Darfur Ocidental. Ainda assim, a situação atual permanece crítica: o número de internamentos no Centro de Alimentação Terapêutica duplicou de janeiro para abril de 2024. Inicialmente, a ala contava com 20 camas; esse número foi aumentado para 34 em meados de março e, posteriormente, para 50 camas em abril de 2024.

Em resposta a este aumento, a MSF tem levado a cabo testes de desnutrição comunitários, de porta em porta, em aldeias distantes de El Geneina, onde não existem instalações de saúde.

O tratamento das feridas invisíveis infligidas pela violência em El Geneina é também uma atividade importante.

"Um conflito armado como o que está em curso no Sudão tem um grande impacto na vida das pessoas, e ter apoio de saúde mental pode ajudar a evitar que reações normais se transformem em sintomas mais graves”, sublinha a psicóloga da MSF que trabalhou em El Geneina, Cynthia Matildes.

A única opção

As vozes desta guerra são também as dos refugiados sudaneses, que fugiram para o país vizinho: o Chade. Entre eles estão profissionais da MSF que se deslocaram para salvar a vida, de El Geneina para Adré, onde se abrigaram sem esperança de retornar.

Nos contextos voláteis de guerras e violência intercomunitária, as feridas não ficam apenas na pele, mas também profundamente gravadas nas mentes e almas das pessoas afetadas. Esse impacto estende-se tanto aos pacientes quanto aos profissionais humanitários que trabalham nesses ambientes.

Aisha Bilal é promotora de saúde pela MSF. Trabalhou anteriormente em El Geneina, mas está agora a apoiar as equipas no campo de trânsito de Adré. É também refugiada de guerra: além de ajudar a prevenir e a sarar traumas do conflito, sente-os também na própria pele.

"Não tivemos outra escolha senão fugir, porque as condições de vida em El Geneina se tornaram insuportáveis. Não conseguíamos sair de casa, tivemos de ficar escondidos, sem água ou comida, sob ameaça constante”, recorda Aisha.

“Já trabalhava como promotora comunitária em El Geneina, porque me formei em desenvolvimento comunitário. O meu papel é ajudar pacientes e equipas médicas a se entenderem e explicar às pessoas quais serviços médicos estão disponíveis”, explica. “Como refugiada, tenho as mesmas necessidades que todos aqueles que vêm ao centro de saúde para tratamento.”

A fuga maciça de El Geneina para Adré continua, impulsionada não apenas pela violência, mas também pela crescente falta de alimentos. Muitos atravessam para Adré em busca de sustento, água e descanso, alguns com a esperança de voltar para El Geneina, outros com intenção de nunca mais retornar.

Nafissa fugiu dos ataques brutais em El Geneina, em junho de 2023. Encontrou refúgio no Leste do Chade e, atualmente, vive com dois dos filhos no campo de refugiados de Aboutengué. O marido foi morto em 2022 durante um período anterior de violência.

"A guerra escalou no ano passado, mas já havia violência na nossa região antes disso. Nos últimos anos, a minha casa foi incendiada quatro vezes. Um dos meus filhos foi morto em maio de 2023. Tinha apenas 10 anos. Foi baleado na rua e sucumbiu aos ferimentos três dias depois no hospital”, lembra Nafissa, antes de proferir as palavras que têm definido a sua vida no último ano.

“Quando ouvi falar de novos ataques a chegar ao nosso bairro, saí de casa com os meus dois filhos e nunca mais voltei.”

Mas a jornada para o Chade não foi assim tão linear. A certa altura, Nafissa deparou-se com homens armados, que começaram a disparar contra a multidão. “Foi quando perdi a minha filha. No dia seguinte, mais violência: estava a caminhar na berma da estrada com o meu filho quando fomos parados por mais homens armados”, relata.

“Tentaram magoá-lo com uma faca, mas eu enrolei um pano na minha mão e consegui desviar a lâmina para o proteger. Nem podia acreditar quando chegamos à fronteira em Adré, nunca pensei que chegaríamos lá vivos. Na fronteira, encontrei novamente a minha filha, estava exausta e assustada, mas senti-me tão aliviada por ela estar viva.”

De olhos bem fechados

Um ano depois, o tumulto violento chega a novas áreas do Darfur, como El Fasher, de onde fogem ainda mais pessoas e se perdem ainda mais vidas.

Em contraste com a violência extrema e as terríveis condições enfrentadas pela população, a atenção internacional dada a esta crise é, no máximo, diminuta. Durante meses e meses, a Médicos Sem Fronteiras foi a principal prestadora de cuidados na maioria do território do Darfur.

As equipas da MSF não tiveram outra escolha senão estender as atividades de trabalho para áreas que são geralmente asseguradas por agências da ONU, como o fornecimento de água e energia.

A MSF está a garantir a resposta que devia estar a ser dada por outras entidades humanitárias. Em todos as infraestruturas onde isso acontece, porém, existe um elefante na sala. Uma questão presente na mente de todos os trabalhadores humanitários que se debatem para prestar apoio no Chade e no Darfur: até quando é que isso será sustentável?