As instalações apoiadas pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Noroeste e Nordeste da Nigéria têm registado, desde abril, um aumento drástico no número de crianças internadas por desnutrição. Em paralelo à prestação de cuidados vitais a um número crescente de jovens pacientes, as equipas da MSF tentam também reforçar a resposta a nível da comunidade. No estado de Kebbi, por exemplo, viajam até às comunidades para partilhar a receita de “Tom Brown”.
Seguindo a tendência dos restantes estados do Norte da Nigéria, Kebbi tem enfrentado uma onda tremenda de casos de desnutrição. Só em maio, foram internadas cerca de 1.000 crianças no centro de alimentação terapêutica da MSF, no Hospital Maiyama – um aumento de 80 por cento em relação ao mesmo período do ano passado. Seguiu-se junho e julho, dois meses em que estiveram internados mais de 260 pacientes numa unidade que tem apenas 210 camas.
Para além do tratamento intensivo, foram também inscritas em meados de julho mais de 11.000 crianças no programa de nutrição ambulatória apoiado pela MSF em cinco centros de saúde de menor escala no estado de Kebbi.
“A amplitude desta crise pede por maiores esforços nas atividades de prevenção”, sublinha Maryam Muhammad, coordenadora das equipas de promoção de saúde da MSF em Kebbi. “É por isso que também levamos a cabo iniciativas de sensibilização e promoção a nível comunitário, para ajudar os pais a evitar o pior para os filhos.”
Uma solução local contra a desnutrição
Maryam e a sua equipa fazem-se à estrada quatro dias por semana, viajando de comunidade em comunidade, num jipe carregado de mesas, tachos, panelas, colheres e latas recicladas a transbordar de feijões de soja, folhas de moringa, óleo de palma e amendoins.
“É tudo o que precisamos para fazer a demonstração de ‘Tom Brown’”, esclarece Maryam, a caminho de Maishaika, uma aldeia a 40 quilómetros do centro de alimentação da MSF. “Isso e umas canções que fiquem na cabeça, para nos certificarmos de que ninguém se esquece dos ingredientes.”
Inspirada numa receita tradicional nigeriana conhecida como “kwash pap”, “Tom Brown” é uma mistura de farinha consumida como uma papa adoçada, preparada com ingredientes nutricionais cultivados e disponíveis nos mercados do Norte da Nigéria.
A mistura tem sido aprimorada ao longo dos anos por nutricionistas e tornou-se numa ferramenta eficaz para o tratamento e prevenção da desnutrição. Em 2022 e 2023, estudos conduzidos na Nigéria mostraram resultados promissores no uso da receita em crianças com desnutrição aguda moderada, com a mistura “Tom Brown” a alcançar potencialmente mais crianças pelo mesmo custo que os alimentos terapêuticos pré-preparados, como a pasta de amendoim.
Capacitar mães e filhos
Após uma viagem de 35 minutos, o jipe estaciona em Maishaika. Maryam e a equipa dirigem-se ao ancião da aldeia para cumprimentá-lo e confirmar a sua aprovação para a demonstração do dia.
Escassos minutos depois, começam as atividades. Mesas, cadeiras e ingredientes saem das caixas e são instaladas. Voluntários vão de porta em porta para chamar os restantes aldeões. Num abrir e fechar de olhos, a pequena praça da aldeia transforma-se numa tenda de mercado e uma centena de mulheres cobertas com lenços coloridos sentam-se em cadeiras e no chão para assistir à demonstração.
Maryam, que trabalha há mais de 15 anos como promotora de saúde, sabe como obter e reter a atenção de outrem. Com uma energia transbordante, uma potente voz e uma colher na mão, começa a explicar o que é a desnutrição e o que elas, mães e avós, podem fazer para combatê-la.
Transforma prontamente palavra em ação e chama uma mulher da plateia para começar a preparar com ela o que manterá a desnutrição a um horizonte distante: “Tom Brown”. Em Kebbi, a receita é baseada em simples porções: seis medidas de sorgo ou milho-miúdo, três de feijões de soja e uma de amendoins. Após um processo rigoroso de imersão, limpeza, seca e torrefação, os ingredientes são misturados para serem moídos num pó. O pó é depois misturado com água limpa, despejado em água a ferver, e a papa resultante é cozinhada durante uns minutos.
Dependendo do que está disponível no mercado, das preferências e daquilo que as famílias podem pagar, podem ser acrescentados outros ingredientes, como óleo de palma, folhas de moringa, leite de vaca ou carne, para fornecer energia e nutrientes extra às crianças. Mas com as famílias a enfrentar níveis de inflação desenfreados – os mais altos das últimas três décadas – e um aumento contínuo do preço dos alimentos, adicionar outros ingredientes pode ser um luxo que muitos não conseguem pagar em Kebbi.
A confeção da receita é cantada em repetição, e são entregues copos às crianças para provarem a papa. As mulheres riem e sorriem. A poucos metros de distância, o ancião da aldeia olha com curiosidade. É o único homem que assiste à demonstração.
“Os homens terão uma sessão dedicada noutro dia. Por razões culturais, devemos separar as sessões”, explica Maryam. “Mas tê-los a bordo é fundamental, pois são quem fornece a comida à família. No início, alguns estavam preocupados com o tipo de mensagem que seria espalhada durante as sessões com as mulheres e diziam-lhes para não virem. Por isso, decidimos ter sessões dedicadas com os pais para mostrar o que fazemos e dizemos. Isso ajudou muito e agora os homens estão a demonstrar um verdadeiro interesse nas sessões.”
Uma receita para a vida
Após uma hora de demonstração com as mulheres, Maryam e a equipa empacotam todos os artigos e pedem a todas as mães para aguardarem: é uma oportunidade para os filhos serem observados para a desnutrição aguda, através de um check-up rápido, usando as fitas MUAC para medir a circunferência do braço das crianças. Entre as 28 crianças examinadas, mais de um terço foi prontamente encaminhado para o programa de nutrição terapêutica da MSF.
"Este tipo de demonstração culinária é crucial, porque as pessoas entendem que podem evitar a desnutrição aguda, em vez de ter de tratá-la depois numa instalação", sublinha Maryam antes de saltar para o jipe. "A prevenção sempre será melhor do que a cura. A MSF não permanecerá aqui para sempre, por isso são necessárias abordagens sustentáveis para reduzir a desnutrição grave. E sabemos que as pessoas que capacitamos hoje vão passar a receita para outras."
Entre janeiro e maio de 2024, Maryam e a equipa de promoção de saúde organizaram 554 demonstrações no estado de Kebbi. Mais de 13.300 pessoas participaram nesses eventos, incluindo 1.461 homens.
Mas esses esforços, por mais importantes que sejam, continuam a ser uma gota no oceano em comparação com as necessidades no estado e no Norte da Nigéria. É necessário mais – muito mais – para combater a desnutrição. Promover uma alimentação infantil adequada é fundamental, juntamente com um reforço do acesso à saúde.
Segundo dados recentes, quase 4,4 milhões de crianças com menos de cinco anos sofreram desnutrição aguda entre maio de 2023 e abril de 2024 no Nordeste e Noroeste da Nigéria.