João Rosado

Comentador SIC Notícias

UEFA Euro 2024

Opinião

Somos todos Cristianinhos

Ou gostaríamos de ser, mas Roberto Martínez na Alemanha teve o Ronaldo pai. A opinião de João Rosado.

Somos todos Cristianinhos
Soccrates Images

O rei do Campeonato da Europa não facilita a vida a ninguém. Veste o 10 e ameaça não se contentar com isso. O “autogolo” já faturou por 10 vezes e com três encontros por realizar tudo indica que o recorde do anterior Europeu (11 golos na própria baliza) vai cair.

Caem os recordes, cai Cristiano Ronaldo. Para o bem e para o mal, os recordes e CR7 andam de mãos dadas há duas décadas, desde os tempos em que um Angelos Charisteas sobrevoou os céus da defesa portuguesa e deixou o País a chorar. Nessa altura, as lágrimas de Cristiano escorriam sinceridade, o coração do jovem avançado era o coração de todos nós, o desporto favorito de Portugal ainda era o futebol e não a vida georginiana do melhor marcador de sempre.

Vinte anos depois da tragédia grega que fez Scolari baixar as bandeiras, quase tudo mudou. Se o capitão chora é porque chora e um capitão não chora. Se marca os livres é porque marca os livres. E se os deixa para Bruno Fernandes é porque não os devia deixar. E se faz uma assistência para Bruno é porque devia ter atirado diretamente à baliza.

Na comparação com Pepe, só falta dizer que Ronaldo é dois anos mais velho e devia estar nos greens da Florida a medir as tacadas com Joe Biden. Ignora-se que Cristiano foi na equipa nacional o terceiro elemento que mais quilómetros (49,64 km) correu na Alemanha, atrás de Rúben Dias (50,81 km) e de Bernardo Silva (55,58 km). Da mesma forma que se ignora que bateu tantos livres diretos como Bruno Fernandes, contabilizando ambos seis conversões, ou seja, um quinto (!) do que foi consentido a Toni Kroos, o craque que terminou a carreira depois de assumir a transformação de 30 livres diretos nos desafios da Mannschaft .

Até às meias-finais que se começam a disputar hoje, CR7 lidera a lista dos atletas com mais remates, deixando Kylian Mbappé a três tiros de distância. Dos 23 disparos efetuados, 9 foram enquadrados, o que significa que só Kai Havertz (11 no alvo) conseguiu um rácio superior. É verdade que o dianteiro do Arsenal, à semelhança do compatriota Niclas Fullkrug, se despediu do torneio com dois golos mas, para quem ainda não reparou, este Europeu tem sido caracterizado pelo apagão de vários finalizadores de referência.

Romelu Lukaku, recordista de golos na fase de apuramento, regressou à Bélgica com os mesmos tentos que tinha levado na bagagem. Entre os quatro semifinalistas, Harry Kane destaca-se com... dois golos, Mbappé responde com... um (e de penálti), a exemplo de Memphis Depay e de Álvaro Morata. A menos que se considere Cody Gakpo, Georges Mikautadze e Jamal Musiala referências mundiais na arte da concretização, até agora o Alemanha’2024 tem deixado pistas muito importantes a propósito do esbatimento da influência do homem da posição 9.

A RODA É QUADRADA

Neste contexto, Cristiano é tão culpado como o comum dos artilheiros, o que não significa que esteja absolvido de todos os números e sobretudo de alguns episódios que por culpa própria enegreceram a sua participação. Quando é apanhado oito vezes em posição irregular, encabeçando esta indesejável lista, o símbolo do Al-Nassr deve, em primeiro lugar, condenar-se a si próprio. Quando manda Bruno Fernandes afastar-se e assume a marcação de um livre lateral que mais parecia um pontapé de canto, coloca-se a si próprio numa cela emocional que um futebolista com metade da experiência saberia evitar. E quando no jogo seguinte já consente que seja o 8 do Manchester United a tentar converter um livre frontal muito mais propício ao seu remate, o capitão denuncia uma espécie de cedência à pressão exterior que não se coaduna com uma liderança forte e coerente.

Estes foram os erros pelos quais Ronaldo tem de responder se quiser manter o perfecionismo que tem caracterizado uma carreira acima da dos demais. O que é mais estrutural e exige outro género de reflexão não lhe pertence, porque a seleção não lhe pertence. Só Roberto Martínez deve ser inquirido para se perceber por que motivo a equipa com mais posse de bola (64,8%) em cinco jornadas e aquela que mais quilómetros (635,7) percorreu (dois prolongamentos incluídos, é certo) mostrou uma flagrante falta de identidade e não foi capaz de experimentar o clássico 4-4-2.

O selecionador e apenas ele pode ser responsabilizado pelo facto de Portugal nunca ter utilizado em simultâneo os dois pontas de lança de raiz que convocou (Gonçalo Ramos entrou a meio da segunda parte do encontro com a Geórgia e o sacrificado foi CR7...) e como é evidente cabe ao sucessor de Fernando Santos explicar os 486 minutos que fizeram de Ronaldo o mais utilizado dos futebolistas de campo.

Talvez o esgotamento físico de um goleador com 39 anos explique a imagem do capitão sentado no meio da roda improvisada por Portugal quando o treinador dava a palestra para a segunda parte do prolongamento frente à França. Do outro lado, Deschamps era o único foco, o (único) protagonista. Junto ao banco lusitano, as câmaras ignoravam o dono da palavra e o primeiro plano era para a lenda prostrada no centro, como se também aí o universo tivesse de descer ao planeta Ronaldo.

Cristianinho, que daqui a dois anos terá a idade de Lamine Yamal e até pode estar com o pai a jogar um Mundial, podia ser o jogador no meio daquela roda. Podia ser qualquer um de nós, aliás. Todos gostaríamos de jogar com Ronaldo e todos seríamos capazes de representar a criança que se está a iniciar nos escuteiros. Tratando-se de Ronaldo, Martínez deveria ter-se poupado ao mais infeliz dos autogolos. Os tais em que a bola, como algumas rodas, parece quadrada.