Euro 2016

Memórias felizes de histórias inesquecíveis

O relógio assinalava as 22:19 do 10º dia do sétimo mês de 2016. Depois de 109 minutos de arrepios e calafrios, de bolas que os deuses não deixaram entrar e de defesas que pareciam desafiar a lógica, um remate simples, portentoso, daquele que, aos olhos de muitos, era o protagonista mais improvável, aquele remate daquele herói inesperado sarou as feridas de décadas de frustrações, de derrotas no prolongamento, nos penáltis, de tantos e tantos craques que pareciam ter tudo, anos em que parecíamos ter tudo para dar certo... Todas essas feridas cicatrizaram e, naquele dia, aquela bola entrou e o que outrora era um sonho, ganhou contornos de realidade: Portugal Campeão da Europa. Um ano depois do mais belo capítulo da história do futebol português, recordamos as angústias, os triunfos, a festa e os momentos que mais marcaram o percurso dos eternos heróis de Paris.

O MAIOR EUROPEU DE SEMPRE

2016. Ano de Campeonato da Europa de futebol. Um evento continental com visibilidade à escala global. Uma competição que reúne as principais seleções do velho continente e, pela primeira vez, num formato alargado, com 24 participantes.

O modelo era simples de compreender: seis grupos (A a F) com quatro países cada. Passavam à fase a eliminar 16 dos 24 iniciais (os dois primeiros classificados de cada grupo e os quatro melhores terceiros), pelo que, para Portugal, vice-campeão em 2004 e três vezes semifinalista (1984, 2000 e 2012), passar a fase de grupos era missão quase obrigatória.

À PROCURA DA INÉDITA GLÓRIA

França era o palco de todas as emoções. Um destino de memórias, da geração de Chalana, Jordão e companhia que, 32 anos antes, chegara às meias-finais, onde caíria apenas aos pés da seleção anfitriã e no prolongamento. Do outro lado havia um tal de Platini, que levou a seleção gaulesa à glória no Europeu de 84.

Trinta e dois anos volvidos, (sempre) com uma grande dose de esperança em chegar ao topo ("este ano é que é"), o comandante das tropas portuguesas era Fernando Santos. Um homem simples, de costumes, de valores, de fé. De muita fé.

Reuters Staff

UMA PREPARAÇÃO PROMISSORA

O desenho daquilo que seria a seleção nacional começou a ganhar forma a 17 de maio, dia em que o selecionador nacional anunciou os 23 convocados. A maior surpresa passava pela escolha do jovem Renato Sanches, que despontara no Benfica ao longo da segunda metade da época em que as águias alcançaram o tricampeonato. A principal ausência era Bernardo Silva, por lesão.

Antes de chegar a solo gaulês, duas vitórias em jogos particulares frente a Noruega e Estónia (3-0 e 7-0, respetivamente) embalavam uma tímida ambição, que não parecera ter ficado comprometida pelo desaire entre triunfos, em território inglês (0-1).

Ronaldo e Quaresma marcaram quatro dos sete golos com que Portugal goleou a Estónia, no último jogo em solo nacional antes do Europeu.
Rafael Marchante

A CHEGADA À TERRA PROMETIDA

Chegava o momento de todas as emoções: a fase final do Euro2016. Com Portugal inserido num grupo com Islândia, Áustria e Hungria, e com um apoio que ultrapassava qualquer fronteira, as aspirações de terminar no 1º lugar do grupo F eram legítimas.

A estreia estava agendada para dia 14 de junho, no Stade Geoffroy Guichard, em Saint-Étienne. O adversário era a perigosa Islândia que, apesar de estreante em grandes competições, apurara-se com mérito próprio, num grupo em que teve a concorrência das mais prestigiadas Holanda, República Checa e Turquia.

A FASE DE GRUPOS

Como era expectável e tradicional neste tipo de provas, a diferença de estatutos não se fez sentir em campo e a seleção nacional não conseguiu mais que um empate a um golo. Uma estreia amarga que esfriou o inebriado êxtase lusitanto em torno da sua equipa.

Robert Pratta

Seguia-se a Áustria e uma potencial vitória - que era quase tão expectável quanto inevitável - colocaria a equipa das quinas na fase seguinte da competição. Mas voltaram a não ser favas contadas e um empate a zero quase gelou as ambições nacionais em solo gaulês. Contudo, nada estava perdido.

Nem de penálti a bola entrou na baliza austríaca.
Reuters Staff

O terceiro e decisivo desafio apresentava um adversário diferente dos anteriores. Uma Hungria revigorada, sem os protagonistas de outras décadas, como as de 1950 e 1960 quando o melhor futebolista do mundo era húngaro e chamava-se Ferenc Puskás.

Esta era uma Hungria com recursos mais limitados que a dos anos de ouro, mas com níveis semelhantes de carisma. Um dos principais símbolos desse carisma estava na baliza: um emblemático guarda-redes que usava umas quase tão emblemáticas calças de fato de treino e que, aos 40 anos, era um misto entre a destreza de um jovem de 20 e a sabedoria de um veterano de... 40. De seu nome Gábor Király.

Vincent Kessler

A vontade lusa era muita mas a ansiedade estava quase ao mesmo nível. Por três vezes estivemos fora do Europeu e por três vezes conseguimos voltar a estar na luta. Seis foram as vezes em que a bola entrou na baliza: 3-3, um empate sofrido mas suficiente para carimbar o apuramento. Contra as expectativas, Portugal apurara-se... no 3º lugar do grupo F, atrás de Hungria e Islândia. Fosse o formato o tradicional nas edições anteriores, com 16 seleções, e já estaríamos fora. Mas não estávamos.

Robert Pratta

O "MATA MATA"

Entrávamos na fase a eliminar e o próximo obstáculo dava pelo nome de Croácia. Uma seleção com outros talentos e pergaminhos claramente superiores aos adversários da fase de grupos.

Nomes como Luka Modrić, Ivan Rakitić, Mateo Kovačić ou Mario Mandžukić não metiam medo mas impunham respeito. Muito respeito. Portugal partia, por isso, com cautela para o duelo dos oitavos-de-final.

E foi de cautela que se preencheu grande parte dos 90 minutos, mais compensações, que não chegaram para encontrar um vencedor. O teimoso 0-0 persistiu até ao minuto 117, altura em que o "Harry Potter" português correspondeu ao momento de magia criado por uma dupla que começara, aí, a fazer estragos: Renato Sanches e Cristiano Ronaldo. Quaresma só teve de encostar e selar o apuramento para os quartos-de-final.

Benoit Tessier
Gonzalo Fuentes

Uma passagem num contexto dramático mas com final feliz voltou a despertar o clima de euforia em torno da seleção nacional e, e , muitos acreditavam que o "este ano é que é" poderia deixar finalmente de ser um chavão.

MIÚDOS E GRAÚDOS

Somos e seremos sempre latinos. Está-nos no sangue. Mas o tempo era ainda de enfrentar cada novo desafio com um misto entre a frieza alemã e a disciplina chinesa. Vinham aí os quartos-de-final e à espera estava a Polónia.

Os 90 minutos voltaram a não chegar e, desta vez, nem os 30 do prolongamento foram suficientes. Tudo teria de ser decidido no sempre dramático desempate por penáltis. Mas desses, nesta fase da competição, tínhamos boas memórias. Foi assim que chegámos às meias do Euro2004 e do Mundial2006 (pobre Inglaterra).

Ricardo foi herói em 2004...
Alessandro Bianchi
...e em 2006.
Jose Manuel Ribeiro

Estava escrito que seria também assim que voltaríamos a chegar às meias-finais de uma grande competição. Os remates certeiros de Ronaldo, Renato Sanches, Moutinho, Nani e Quaresma, em contraste com o falhanço de Kuba (enorme Rui Patrício!), colocaram Portugal a um passo do jogo de todas as decisões.

Reuters Staff

A UM PASSO DO SONHO

A crença aumentava a cada dia e entre os festejos presidenciais e uma Paris pintada de vermelho e verde, ninguém queria pensar noutro cenário que fosse a segunda presença numa final de um Europeu.

Antes, surgia a oposição de um País de Gales que queria continuar a fazer história, naquela que era a estreia da seleção galesa em fases finais de grandes competições. Já estavam nas meias-finais e tinham naturais ambições de sonhar com um lugar na final. Tal como nós.

Mas o que para eles não passou de um sonho, para nós revelou-se um (inesperadamente) tranquilo caminho para chegar à tão desejada final. Sem penáltis nem prolongamento nem golos nos últimos minutos. Tudo ficou arrumado com um categórico 2-0 e aquele que tinha sido um percurso impróprio para cardíacos até então, foi, na fase mais decisiva, quase que um passeio perante um País de Gales desprovido das duas principais estrelas: Gareth Bale e Aaron Ramsey.

Reuters Staff
Reuters Staff

"ESTE ANO É QUE É"

Doze anos depois, o regresso ao jogo de todas as decisões. Aquele em que todas as seleções europeias queriam estar mas só duas lograram tal feito. Doze anos depois, era tempo de curar o trauma de 2004 e vingar todas as eliminações aos pés da seleção francesa, o derradeiro obstáculo antes da glória.

A final de Saint-Denis colocava-nos frente a frente com a seleção anfitriã, que nas meias-finais eliminara a campeã mundial Alemanha e que teria, no palco das decisões, uma percentagem naturalmente muito superior de apoio nas bancadas. Ainda assim, , e acolá, todos os adeptos da seleção nacional queriam gritar, pela primeira vez, "Campeões!". A euforia era incontrolável e a fé, essa, inabalável.

Rafael Marchante
Rafael Marchante

LÁGRIMAS DE FORÇA

Chegara o grande dia e arrancara o grande jogo, num cenário quase bélico. A primeira contrariedade surgiu ao minuto 25, com o capitão obrigado a deixar o relvado no encontro que sempre sonhara poder um dia jogar. Saiu em lágrimas mas deixou em campo uma determinação desmedida e uma vontade hercúlea de vencer. Tão dele e tão nossas.

Reuters Staff
Reuters Staff
Christian Hartmann

O jogo prosseguiu e voltou a repetir-se o filme que já tínhamos visto na fase de grupos, nos oitavos de final e nos quartos de final: drama, drama e mais drama. Já nos descontos, a bola chegou mesmo a bater no poste da baliza portuguesa. Não entrou. Não tinha que entrar. Fechados os 90 minutos do tempo regulamentar, vinha o já habitual prolongamento.

UMA ESTÓRIA PARA A HISTÓRIA

O relógio assinalava as 22:19 do 10º dia do sétimo mês de 2016. Depois de 109 minutos de arrepios e calafrios, de bolas que os deuses não deixaram entrar e de defesas que pareciam desafiar a lógica, um remate simples, portentoso, daquele que, aos olhos de muitos, era o protagonista mais improvável, aquele remate daquele herói inesperado sarou as feridas de décadas de frustrações, de derrotas no prolongamento, nos penáltis, de tantos e tantos craques que pareciam ter tudo, anos em que parecíamos ter tudo para dar certo... Todas essas feridas cicatrizaram e, naquele dia, aquela bola entrou e o que outrora era um sonho, ganhou contornos de realidade: Portugal Campeão da Europa.

Christian Hartmann
Reuters Staff
Michael Dalder
Michael Dalder

Uma alegria imensa apoderou-se de um povo que ainda não conseguia acreditar. De norte a sul, nas ilhas e em todo o universo lusófono, os sorrisos rejubilantes eram espelho de um orgulho ensurdecedor em ser português. O trono era finalmente nosso.

Um dia e uma noite históricos. Memórias felizes de histórias inesquecíveis. A melhor das epopeias lusíadas, imortalizada pelos heróis de Paris.

Reuters Staff
Christian Hartmann
Rafael Marchante
Pedro Nunes
Rafael Marchante