Tiago Correia

Comentador SIC Notícias

Governo

A saúde nos próximos quatro anos 

Conhecendo a orgânica e a composição do Governo, é desejável e possível projetar a governação na área da saúde no novo ciclo político.

A saúde nos próximos quatro anos 

Um primeiro nível de análise diz respeito aos sinais das políticas que serão seguidas. Nesse exercício, o melhor guia é o programa eleitoral do PS, mesmo que o seu desenho não tenha contemplado um cenário de maioria absoluta.

Se há algum sinal até este momento, esse sinal tem sido que o Governo vai manter-se fiel ao programa com que foi a eleições. Isto apesar de as maiorias absolutas permitirem – assim haja interesse – um espírito mais reformista. É isso que sobressai nas maiorias parlamentares de um só partido ou de coligações bem firmadas: a Lei de Bases da Saúde de 1990 durante a maioria do PSD, a primeira revisão da Lei de Bases da Saúde em 2002 com a expansão dos hospitais SA de capitais públicos durante a chamada “nova Aliança Democrática”, a substituição dos hospitais SA de capitais públicos por hospitais EPE e a grande reforma dos cuidados de saúde primários durante a maioria do PS, ou a nova Lei de Bases da Saúde em 2019 durante a geringonça.

Uma vertente que sobressai no programa eleitoral é o betão. A reboque do PRR, a construção e modernização do SNS darão um grande fulgor ao Governo. As necessidades são inegáveis e os impactos positivos serão sentidos pelo poder local, pelos profissionais e utentes. Haverá momento mais desejável do que inaugurações para descerrar placas?

Outra vertente é a melhoria da gestão do SNS, através dos modelos de prestação dos cuidados de saúde primários e de um novo órgão central de direção, coordenação e monitorização do SNS.

Há ainda uma vertente de melhoria da resposta assistencial em áreas deficitárias, em concreto os cuidados continuados e o acompanhamento dos utentes residentes em estruturas para idosos.

E uma última vertente centrada nos profissionais, através da progressiva aplicação do regime de dedicação plena, primeiro apenas a médicos, a fixação de médicos nas regiões mais carenciadas e a revisão da carreira de enfermagem.

O sinal da governação que se retira destas vertentes é a ação política autocentrada no SNS. Não há nenhum erro nisso, muito pelo contrário, dado o trabalho de melhoria constante que esta máquina exige a bem do país, de quem aí trabalha e de quem acede aos cuidados. Contudo, o ministério da saúde não ministra apenas o SNS, ministra o sistema de saúde. E falar do sistema de saúde implica não ignorar os financiadores e prestadores privados, lucrativos e sociais; implica não ignorar os profissionais de saúde sujeitos a relações laborais e condições de trabalho com esses empregadores; implica ainda reconhecer a fatia da despesa das famílias em saúde que teima em não descer. Nada se diz sobre isso. E a necessidade de falar disso não desvirtua a atenção que deve ser dada ao SNS. O erro está em não perceber, em ignorar ou em preferir não pensar a articulação do funcionamento entre os diversos setores que intervêm na saúde. Centrar a ação do Governo no SNS não apaga tudo o resto que continua a existir. Contribui, isso sim, para a desarticulação e concorrência entre setores e serviços.

Daqui decorre o segundo nível de análise, que diz respeito aos desafios futuros. Um desafio é a contestação laboral, até aqui circunscrita aos setores de centro-direita. Desfeita a geringonça, o Governo voltará a ter nas ruas os sindicatos do setor afetos à CGTP.

Outro desafio diz respeito aos mecanismos que serão usados para tornar as políticas mais efetivas. As tentativas de distribuição dos profissionais pelo território têm falhado. O que será feito de novo? A fuga de profissionais para o setor privado ou para o estrangeiro é bem conhecida. O que será feito de novo? O setor privado tem ganhado capacidade de implementação no mercado, o que significa maior atratividade para os utentes. Qual o entendimento sistémico do ministério da saúde para melhorar a prestação de cuidados e diminuir a concorrência com o SNS?

Há ainda o desafio da aprendizagem com as políticas públicas. Surpreende o quanto a tomada de decisão em matéria de saúde em Portugal continua a prescindir da avaliação sistemática de políticas e da compreensão dos processos de implementação. De outro modo, não há forma de saber que políticas são boas políticas e qual a forma de potenciar os bons resultados.

A composição do Governo, saúde incluída, associa competência técnica à experiência de governação. É legítimo exigir-lhes mais e que erros do passado não sejam cometidos.