Guerra Rússia-Ucrânia

A morte, na paz e na guerra

Opinião de Paula Mesquita Lopes, SIC.

A morte, na paz e na guerra

Costuma dizer-se que “Quem não respeita os mortos, não respeita nada”, talvez porque respeitar os mortos, dar-lhes sepultura e honrá-los, seja intrínseco à condição humana. Ao contrário de todos os outros animais, os seres humanos não deixam os cadáveres dos seus semelhantes no local onde a morte aconteceu.

Algo impensável no século XXI porque a morte acontece maioritariamente nos hospitais ou em casa, mas impensável também há pelo menos 78 mil anos. Há 780 séculos que os humanos fazem enterros e, mais do que isso, respeitam e prestam culto aos mortos.

A prova é a mais antiga sepultura da espécie Homo Sapiens (a nossa), que foi descoberta numa gruta, no Quénia. Há cerca de 78 mil anos, uma criança com três anos foi enterrada de forma intencional, o que torna quase insuportável constatar o retrocesso civilizacional quando por estes dias na televisão uma mulher ucraniana diz: “Estavam a disparar. Mataram o meu marido mas ele não foi sepultado. Está ali deitado. Não conseguimos chegar até ele.”

E ouvir a explicação da filha: “Havia bombardeamentos e tentámos arrastá-lo dali para fora mas era demasiado difícil. Não conseguimos.” Igualmente aterrador é pensar no sofrimento das mães dos soldados russos, cujos filhos mortos foram deixados na autoestrada E40, entre Kharkiv e Malaya Rohan, como testemunhou o repórter Rui Caria.

Voltando à História, sabemos que, durante séculos, o respeito pela vida e pela morte foi diferente nos tempos de guerra e nos tempos de paz, mas no século XIX isso começou a mudar. Em 1864, a primeira Convenção de Genebra estabelecia a obrigação de respeitar e cuidar dos militares feridos ou doentes, sem discriminação dos inimigos, e que as ambulâncias e os hospitais seriam protegidos. Em 1906 a segunda Convenção estendeu as obrigações da primeira às forças navais. Ambas só viriam a ser aplicadas durante a Grande Guerra e foi depois deste primeiro conflito mundial, que a terceira Convenção de Genebra, de 1929, definiu o tratamento dado aos prisioneiros de guerra.

Depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial, decidiu-se que era tempo de estabelecer regras claras para a própria guerra e foi assim que se chegou, em 1949, à quarta Convenção de Genebra. É esta que se mantém atualmente em vigor, com vários protocolos adicionais, propostos entre 1977 e 2005. Em nome da União Soviética, Leonid Brezhnev subscreveu a atual Convenção de Genebra em 1977 e Mikhail Gorbachev ratificou-a em 1989.

O atual Governo de Moscovo está, portanto, obrigado a respeitá-la. Está obrigado a voltar as costas à barbárie e a abdicar da crueldade para conseguir os seus objetivos, quaisquer que eles sejam. No artigo 3.º da IV Convenção de Genebra, que pode ser consultado aqui, está bem explícito que, em caso de conflito armado que não apresente um carácter internacional e que ocorra no território de uma das partes, são proibidas as ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios de pessoas que não tomem diretamente parte nas hostilidades. E mais à frente, no artigo 16.º, está definido que, onde as exigências militares o permitirem, cada parte no conflito facilitará medidas para procurar os mortos.

Pelos séculos passados, ou mais perto na última guerra de Portugal, a Guerra Colonial, soldados ficaram para trás, sepultados nos territórios onde morreram. Mas no Anno Domini de 2022, 78 mil anos depois, o Homo Sapiens do século XXI não pode conceber que não seja possível dar uma sepultura aos mortos ou entregá-los às suas famílias para que os honrem. Não pode conceber a barbárie e a crueldade.

Pelos que ainda estão vivos, tenhamos esperança que a guerra na Ucrânia termine em breve. Também, para que possam honrar os seus mortos.