1. De pouco serve, diante de uma erupção mediática, alegar que os casos remetem sobretudo para outro tempo da Igreja, para outros contextos sociais e eclesiais, ou que, comparando, na última década são poucos os registos de abusos. Um ambiente relacional que permite o sucessivo abuso de menores numa instituição da Igreja, durante anos, é já uma grave traição ao evangelho. E os crimes hediondos são como feridas abertas na memória, perduram apesar das palavras e das razões em pedidos de perdão, dos encontros com vítimas, das indemnizações e da reafirmação da “tolerância zero”, desde João Paulo II – quando a gravidade do problema teve ainda de transpor a incredulidade – a Francisco, passando por Bento XVI – o pontificado que redesenhou o essencial do edifício normativo para a resposta aos abusos sexuais.
Um ato de abuso sexual de menores “ganha uma gravidade ainda maior se for praticado por membros do clero ou por qualquer outra pessoa no âmbito das atividades promovidas pela Igreja”, até porque “a sociedade espera da Igreja e de cada um dos seus membros, em particular do clero, comportamentos irrepreensíveis e exemplos de vida”[1].
São conhecidas também as dificuldades sentidas pela Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores. Peter Saunders e Marie Collins, vítimas de abusos e convidados para integrar a referida Comissão, demitiram-se em 2017. Collins denunciou a “vergonhosa falta de cooperação” de alguns membros da Cúria, enaltecendo a vontade do Papa e do presidente da Comissão, o cardeal-arcebispo de Boston, Sean O’Malley[4].
Tragédia foi a palavra usada por Francisco. “É imperativo”, diz o Papa, que a Igreja possa “reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis”[2].
Num encontro com jesuítas na Irlanda, à margem do Encontro Mundial das Famílias em agosto de 2018, Francisco voltou a apelar à denúncia de casos conhecidos de abusos. São a “consequência do abuso de poder e de consciência”. Não basta “virar a página”, é necessário, disse, “voltar a dar vida às pessoas”[3].
O papa Francisco enfrenta terrenos minados. A investigação recente no Chile revelou processos canónicos com relatos de abusos que não foram comunicados às autoridades civis. Algumas nem sequer chegaram ao conhecimento da Congregação para a Doutrina da Fé. Quando, no Chile, em janeiro deste ano, falou de calúnias e exigiu provas aos que acusavam um bispo de encobrir um padre pedófilo, o Papa não estava na posse dos factos que eram já conhecidos pelo episcopado chileno. Confirmada a atitude dos bispos do Chile, Francisco chamou-os ao Vaticano para lhes pedir que agissem em conformidade – entenda-se… renúncia – e reuniu-se com as vítimas a quem confessou, mais uma vez, ter “vergonha”.
Francisco tem sido firme a pressionar a renúncia de prelados que não dão sequência às diretrizes: comunicar as suspeitas e colaborar com as autoridades civis. Foi o caso do ex-arcebispo de Adelaide, condenado já nos tribunais civis por ter encoberto abusos sexuais cometidos por um sacerdote na década de 70.
Apesar de um novo impulso na Comissão, permanecem hesitações, nomeadamente quanto à proposta de criação de um tribunal específico para julgar os bispos abusadores ou que tenham sido de alguma forma negligentes. Foi também recomendado o fim ou a limitação do segredo nos processos e acabar com os prazos de prescrição.
2. Há ainda uma mentalidade clerical a ultrapassar e não é garantido que as normas para os casos de abusos sejam localmente seguidas. A responsabilidade dos bispos tem de ser verificada e atestada.
O Código de Direito Canónico de 1983, o Motu Proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela de 2001 e as normas sobre os delicta graviora, na versão em vigor aprovada por Bento XVI, indicam os procedimentos: qualquer denúncia ou suspeita deve levar a uma imediata investigação interna; se for consistente deve ser encaminhada para a Congregação da Doutrina da Fé; o processo deve ser discreto, salvaguardando os direitos de todos os envolvidos; devem cumprir-se as disposições da lei civil e colaborar com as autoridades.
Em 2012, os bispos portugueses emitiram um documento próprio[5]. Após recurso a “técnicos habilitados” para o “necessário enquadramento jurídico sobre os procedimentos a adotar em face do direito interno português”, a CEP determina que a autoridade eclesiástica competente preste à vítima “o apoio que se mostrar necessário” e acompanhe o processo instaurado na jurisdição civil, aconselhando vítima ou denunciantes à “participação imediata dos factos às autoridades civis competentes”.
Comprovando-se o abuso sexual, a Igreja “fará todo o possível para assegurar que haja apoio pastoral e ajuda terapêutica à vítima e à sua família, quando se mostre necessário e conveniente, usando os meios profissionais e técnicos que se afigurarem úteis”.
Se for conveniente e autorizado, sugere a CEP, torne-se o caso público, com “uma nota transparente, objetiva e precisa dos factos ocorridos e das medidas adotadas”.
3. Os abusos sexuais por parte de membros do clero obrigam a uma abordagem de várias perspetivas. Lembremos três:
- Justiça. As vítimas estão em primeiro lugar. Não se compreenderá que não tenham o devido acompanhamento e indemnização, e que os autores dos atos criminosos não sejam punidos. Assumir os erros implica agir em conformidade. Na reação ao relatório da Pensilvânia, o Papa sugeriu oração e penitência – “oração e jejum”[6] – como ferramentas da prática de fé para reforçar a ação.
A prescrição não deve ser argumento para impedir a reparação e a justiça civil, necessariamente implacável face à gravidade dos crimes, confere também mecanismos de remissão. Mas não é linear o enquadramento com o princípio cristão basilar da misericórdia e do perdão. É evidente o embaraço de muitos prelados surpreendidos e incapazes de lidar com casos de abusos nas respetivas dioceses. Durante anos sem procedimentos definidos e deixados ao arbítrio da circunstância, foram incapazes de lidar com a situação, por mera ingenuidade, por medo do escândalo ou por grave dolo, encobrindo abusos e abusadores, abandonado vítimas e famílias.
“Misericórdia e justiça são as duas faces da mesma realidade”[7], defendeu Francisco, em 2015, na bula de proclamação do Jubileu da Misericórdia.
- Moral. Haverá curativo para tamanha ferida na história de uma instituição religiosa que reclama nas suas origens valorativas as dimensões da confiança e da verdade? Ainda se aponta o dedo pela ignomínia da Inquisição. Alegar que a Igreja é “santa e pecadora” é apenas uma constatação. “Santa” porque se entende fundada por Cristo. “Pecadora” porque é feita por homens concretos e mulheres concretas.
Esta é uma ferida que não vai sarar. A instituição tem assim o dever da reparação e o difícil empreendimento da recuperação da confiança, sem esconder as verdades que doem e chocam. O caso é ainda mais complicado se tivermos em conta que alguns dos colaboradores próximos do Papa estão também sob suspeita de encobrimento ou mesmo de crime de abusos sexuais.
- Media. O caso é irresolúvel. Afinal, com que atos se apaga a memória dramática de um abuso. E como passar rápida e eficazmente da denúncia à justiça? A pressão mediática força o tempo da aplicação processual da justiça. Exige-se a ação preventiva, mas a pressão de uma resposta trará à prática o que a própria Inquisição fazia: bastava uma denúncia para condenar. No tempo mediático, acontece o mesmo. A esta circunstância junta-se ainda o preconceito que Igreja e religião enfrentam na Comunicação Social.
[1] Diretrizes referentes ao tratamento dos casos de abuso sexual de menores por parte de membros do clero ou praticados no âmbito da atividade de pessoas jurídicas canónicas, CEP, 19 de abril de 2012
[2] Carta do papa Francisco ao Povo de Deus, 20 de agosto de 2018.
[3] Papa Francesco in dialogo com i gesuiti in Irlanda, in Civiltá Cattolica, cad. 4038, pp. 447-451, 15 de setembro de 2018, Volume III.
[4] Pelas incidências destes últimos meses, O’Malley passa a ser um nome a ter em conta nas reflexões que os cardeais venham a fazer na escolha do sucessor de Francisco, se esta for condicionada pelo escândalo da pedofilia. Nomeado em 2003 cardeal-arcebispo de Boston – onde tinha despoletado o escândalo nos Estados Unidos –, o franciscano capuchinho assumiu o drama em toda a linha. Sem subterfúgios, O’Malley colocou-se do lado das vítimas, procurou reintegrá-las, vendeu património da diocese para as respetivas indemnizações e recuperou alguma da credibilidade perdida pela Igreja. É um dos mais próximos colaboradores de Francisco.
[5] Diretrizes referentes ao tratamento dos casos de abuso sexual de menores por parte de membros do clero ou praticados no âmbito da atividade de pessoas jurídicas canónicas, CEP, 19 de abril de 2012.
[6] Carta do papa Francisco ao Povo de Deus, 20 de agosto de 2018.
[7] Papa Francisco, Bula de proclamação do Jubileu extraordinário da Misericórdia, 11 de abril de 2015.