Viagens com autores

A chegada a Tsaparang: estudámos a melhor forma de entrar no local histórico mais secreto da China sem sermos vistos

Artigo de Joaquim Magalhães de Castro. Uma nuvem de poeira aproximava-se na nossa direção e ouvimos um barulho de motor. Desta vez não era miragem, era um camião militar. Sem dúvida nenhuma que tínhamos sido localizados e agora os militares vinham buscar-nos.
A chegada a Tsaparang: estudámos a melhor forma de entrar no local histórico mais secreto da China sem sermos vistos

Quando acordámos, já a paisagem tinha mudado. Atravessávamos um desfiladeiro apertado que, devido à erosão, se assemelhava a uma gigantesca ruína. O condutor tinha acedido ao nosso pedido de nos deixar a alguns quilómetros de Zanda.

Ao descer do camião fomos de imediato surpreendidos com a amenidade do clima e o cheiro da vegetação em redor, as folhas amarelecidas dos salgueiros deixavam perceber o microclima que caracteriza este vale, atravessado pelo mesmo Sutlej que víramos “nascer” do lado Manasorovar.

A temperatura era bem mais amena do que nos locais por onde tínhamos andado ultimamente, como se tivéssemos passado do inverno ao outono.

Munidos com o mapa que nos tinha desenhado o galês de Lhasa, iniciámos, sem mais demoras, uma caminhada de 25 quilómetros, rumo a Tsaparang.

“Fizemos como os foragidos”

Seguimos a estrada, subindo, curva após curva, sempre com receio de nos cruzarmos com alguém que nos pudesse denunciar. Tinha sido muito difícil chegar aqui e não queríamos deitar tudo a perder devido a uma atitude mais ousada ou a um ato irrefletido, por isso, fizemos como fazem os foragidos, evitamos todo o contacto humano, o que se revelou muito fácil.

Não avistámos vivalma durante todo o percurso e a única construção digna de registo foram as ruínas de um mosteiro que surgiram ao nosso lado direito. Até a vegetação tinha deixado de existir e gargantas profundas cortavam literalmente a estrada, que continuava com uma progressiva inclinação.

Estávamos rodeados por uma bela paisagem que me trouxe à memória os vales perdidos que tinha visitado anos antes, na província do Xinjiang, numa altura em que viajar nessa zona só era possível se nos fizéssemos passar por russos.

Foram precisas três horas até chegarmos ao ponto da estrada que enveredava para sul, rumo às instalações militares que se avistavam, bem ao longe. Por sorte, não passou qualquer viatura, mas se tivesse passado tínhamos tudo programado. Bastava uma corrida para nos ocultarmos atrás de um outeiro ou numa cova do terreno.

Agora que tínhamos de seguir a corta mato, inventando o nosso próprio trilho, optámos por descer o barranco até ao leito do Sutlej, um pouco mais seguro. Escutávamos, ao longe, o tilintar dos chocalhos de animais, o que nos preocupava um pouco, mas a verdade é que não havia ninguém à vista.

A mítica cidade de Tsaparang

Nos últimos quilómetros, tivemos de caminhar por cima dos seixos que ocupavam o leito do rio até avistarmos uma cidade admirável em ruínas, construída como que em degraus, numa parede rochosa.

No meio do aglomerado cor de lama salientavam-se duas estruturas ocres, as únicas que teriam permanecido intactas. Reconheci, numa delas, o Templo Vermelho, plantado no cume plano, uma verdadeira meseta, dessa parede rochosa.

Ali estava, à nossa frente, a mítica cidade de Tsaparang, na margem esquerda do Sutlej, a capital do reino de Guje. A Chaparangue do padre António de Andrade e do irmão Manuel Marques. Finalmente!

Entrámos no perímetro de Tsaparang e ficámos junto a um muro mani, ocultos por uma rocha, a uns 300 metros de Tsaparang. Com a ajuda dos binóculos, apercebemo-nos da existência de uma casota que, por parecer ser habitada, imaginámos que só podia ser a casa do guarda.

“Qualquer movimento poderia atraiçoar a nossa presença”

Ficámos de atalaia, à espera que alguém saísse, o que não tardou a acontecer. O homem que saiu da barraca, como que por instinto, olhou fixamente na nossa direção, como se nos tivesse visto. Baixámo-nos num ápice e aguardámos, colados ao granito, sem nos movermos um centímetro. Não sabíamos se nos tinha visto ou não, mas quando voltámos a apontar os binóculos, o homem tinha voltado a entrar.

Saiu de novo, poucos minutos depois, com um termos na mão e da chaminé da sua casa passou a sair um fio de fumo. Tudo parecia normal e o olhar na nossa direção provavelmente não passara de uma coincidência.

Aproveitámos para acender o fogão e tratámos de preparar a refeição da noite. Já tínhamos decidido em qual das grutas iríamos pernoitar, mas só quando a noite caísse é que nos mudaríamos para lá. Qualquer movimento poderia atraiçoar a nossa presença.

Já noite cerrada, com a ajuda da lanterna, inspeccionámos o interior da gruta escolhida e verificámos que não só estava limpa como tinha imensa palha, que nos serviu para preparar um leito confortável para colocar os sacos camas. Dormi a pensar na cidade fantasma e nos fantasmas dos muitos padres portugueses que aqui viveram. Há semanas que não dormia tão bem, apesar da ameaça do guardião (com quem sonhei), que dava a impressão de ser alguém bastante zeloso no seu trabalho.

Quando acordámos o sol já ia alto. Ao deparar de novo com a cidade em ruínas imaginei que quem a construiu deve ter-se inspirado na paisagem de terra esboroada que caracteriza a região. Reparei, a uns cinquenta metros da gruta, uma espécie de fortificação, também em ruínas, que a areia do deserto ajudava a camuflar.

Estudámos a melhor forma de conseguir entrar no local histórico mais secreto da China sem sermos vistos.

“Galgámos um pequeno muro e corremos com todas as nossas forças”

Teríamos de seguir por uma série de dunas que se erguiam entre o nosso esconderijo e a cidade propriamente dita e rezar para que o guarda não nos visse. Aproveitando um momento em que ele estava no interior da barraca, galgámos um pequeno muro e corremos com todas as nossas forças até aos primeiros edifícios. Depois, fomos subindo progressivamente, de uma ruína para outra, como se estivéssemos a subir uma montanha muito escarpada.

Pelo caminho, fomos passando por grutas, todas numeradas, que faziam lembrar fornos, cheias de estatuetas representando as mais diversas divindades do panteão budista, em alto-relevo. Escurecidas pelo fumo de muitas fogueiras, essas grutas tinham pedaços de tetos caídos e no chão arenoso, onde se podiam ver ossadas humanas, estavam espalhados pedaços de papéis amarelecidos com texto em tibetano e chinês, farrapos de roupa, peças de cerâmica, tudo desfeito e com um aspeto muito antigo. Certas grutas tinham desabado e havia buracos no chão tão profundos que pareciam conduzir às profundezas da terra.

Não só porque sentíamos que o terreno que pisávamos podia aluir a qualquer momento, mas também porque considerávamos este local sagrado, movimentávamo-nos com o maior dos cuidados. As pegadas que deixávamos no solo de areia e saibro eram, provavelmente, as primeiras em muitas dezenas de anos, já que a nossa entrada na cidade fantasma foi feita de uma forma nada convencional.

A parte que interessava ao público, via-se, distintamente, no alto da meseta. O Templo Vermelho, o Templo Branco e uma estrutura com alguma imponência que devia ser o antigo palácio do rei de Guge. Tsaparang parecia uma cidade perdida, vermelha e praticamente soterrada pela areia do deserto de erva do Ngari.

Clandestinos num local que poucos tinham pisado

Passámos várias horas em busca de algum vestígio que nos pudesse indicar o local onde António de Andrade mandou erguer a igreja e também as instalações que, ao longo de uma década, serviram de habitação às várias dezenas de padres portugueses, italianos e espanhóis para ali enviados em missão.

Por muito irrealista que fosse a nossa demanda, não queríamos deixar de a fazer. Pedaços de pergaminhos e restos de esqueletos humanos e de animais, que a ausência da humidade permitiu conservar todos estes séculos, foi o que mais nos impressionou nas duas ou três horas que permanecemos clandestinos neste local que poucos tinham pisado.

Sentíamos, obviamente, alguma frustração em não poder entrar na parte nobre da cidade de cabeça erguida para visitar as duas jóias da coroa de Tsaparang, se bem que soubéssemos bem que não deveríamos descobrir nada de extraordinário, pois não existia notícia de quaisquer descobertas relacionadas com a presença dos jesuítas neste antigo reino tibetano, desagregado em 1630.

Tal não significava, porém, que não existissem vestígios desse passado. No fundo, tínhamos a esperança de vir a encontrar aqui algo de singular que marcasse a diferença em relação a todos os outros sítios religiosos do Tibete. No entanto, procurar indícios da igreja nesse mesmo dia era abusar da nossa sorte, por isso resolvemos fazer uma segunda incursão no dia seguinte, agora que conhecíamos bem o terreno.

“Tínhamos sido localizados e agora os militares vinham buscar-nos”

De tão distraídos que estávamos com as nossas pesquisas, quase nos passava despercebido um vulto que se movia nos campos arenosos, em baixo, precisamente junto à gruta onde tínhamos dormido. O guarda não era de certeza, tratava-se de alguém mais novo e que coxeava bastante. O homem parecia bastante concentrado, olhando de um lado para o outro, como se estivesse à procura de algo. Escondemo-nos numa das grutas, fazendo figas para que ele não nos tivesse descoberto.

Pouco tempo depois, uma nuvem de poeira aproximava-se na nossa direção e ouvimos um barulho de motor. Desta vez não era miragem, era um camião militar que aí vinha. Sem dúvida nenhuma que tínhamos sido localizados e agora os militares vinham buscar-nos.

Descemos atabalhoadamente os socalcos das ruínas, pisando sem preocupações o que horas antes tínhamos calcado com inúmeros cuidados, saltando o pequeno muro, mesmo a tempo de nos escondermos por detrás de uns arbustos espinhosos, procurando camuflarmo-nos o melhor que podíamos.

Entretanto, mais abaixo, o velho guarda tinha-se juntado ao coxo e olhavam ambos para a cidade morta enquanto se dirigiam na direção de meia dúzia de militares que tinham saído do camião estacionado junto à barraca. Falavam animadamente e, de vez em quando, apontavam na direção da gruta onde tínhamos dormido.

Era possível que as nossas pegadas nos tivessem traído e agora a gruta já não nos poderia servir de esconderijo em caso de necessidade. De repente, como se nos tivessem adivinhado os pensamentos, dirigiram-se para a gruta, de olhos postos no chão, como perdigueiros no rasto de um suspeito.

Com os binóculos seguíamos-lhes os passos sem que eles nos pudessem ver, até que, a determinada altura, se separaram. Os militares dirigiram-se para a cidade com o coxo.

O velho voltou a percorrer o caminho que tinha feito, agora em sentido contrário. Parou uns minutos junto a umas pedras, baixou-se e fez ali mesmo as suas necessidades. Via-se que era uma pessoa bastante zelosa, pois mesmo naquele cuidado continuou a varrer o horizonte com o seu olhar de lince.

“Ficámos deitados talvez umas duas horas, sem fazermos qualquer movimento”

Permanecemos imóveis, protegidos pelo arbusto e pela nossa roupa, castanha de cor própria, mas sobretudo da sujidade da terra. Por momentos, ainda me questionei se estariam mesmo no nosso encalce, mas logo percebi que os militares andavam mesmo à nossa procura. Valeu-nos o facto de não terem sido muito persistentes

Pregados ao solo, não ousávamos levantarmo-nos. Quando o fizemos, uma meia hora depois, reparamos que o velho estava de novo junto à casa, desta vez acompanhado por um cão. Más notícias. Dos militares, nem um sinal, porém, o camião continuava estacionado.

Ficámos deitados talvez umas duas horas, sem fazermos qualquer movimento, e só depois de ouvirmos o barulho contínuo do motor, sinal que os militares se iam embora, é que nos erguemos, com muito cuidado para regressar à gruta onde tínhamos estado, deduzindo, desta feita, que, se eles por lá tinham passado, certamente não voltariam tão cedo. Mas estávamos redondamente enganados: nessa noite, enquanto preparávamos o jantar, aguardando que a noite caísse, ouvimos umas vozes que nos sobressaltaram.

“O velho guarda trazia uma espingarda a tiracolo e vinham na nossa direção”

Fui até à entrada da gruta e reparei que o velho guarda continuava as suas buscas, agora na companhia do coxo, que trazia uma espingarda a tiracolo. E vinham na nossa direção!

Sem hesitar um segundo, apagámos o fogareiro, despejámos a água quase a ferver da panela, pegámos nas mochilas e enfiámos tudo num recanto interior da gruta, inacessível a quem olhasse a partir de entrada. Tivemos ainda tempo de dar um jeito à palha, para a desalinhar, de forma que não revelasse que alguém ali tinha dormido, antes de nos colocarmos em pé, em cima das mochilas, literalmente colados à parede.

Como os pés eram ainda visíveis, apressamo-nos a dissimulá-los com bocados de palha. As vozes estavam cada vez mais próximas, tão próximas, que os imaginava a olhar para dentro da gruta. Felizmente, não chegaram a entrar.

Sustendo a respiração tínhamos, mais do que medo, uma grande vontade de rir. A situação tinha algo de caricato e, apesar da arma, era pouco provável que nos dessem um tiro se viessem a descobrir-nos. Depois de terem estado a falar alguns minutos em frente à gruta, o coxo e o velho foram-se embora.

Decidimos depois deste episódio que o melhor era abandonar a zona durante a noite, pois não conseguiríamos voltar a dormir tranquilos em Tsaparang. Assim, ao anoitecer, pusemo-nos a caminho de Zanda sem olhar para trás.