Mundo

Avó chilena reencontrou neta roubada, mas ainda procura pelo filho na Argentina

Buscarita Roa encontrou a neta, 50 anos depois do filho ter sido raptado pela ditadura argentina. Na altura, o jovem tinha 23 anos, praticamente a mesma idade que a tinha a neta aquando do reencontro.

Avó chilena reencontrou neta roubada, mas ainda procura pelo filho na Argentina
Márcio Resende

Ao fim de 50 anos, Buscarita Roa é a única chilena das Avós da Praça de Maio que procura pelo filho sequestrado pela ditadura argentina, mas conseguiu recuperar a neta criada pelos raptores.

"O meu filho tinha 23 anos quando desapareceu. Praticamente a mesma idade da minha neta quando a reencontrei. O meu filho lutava por um mundo melhor. Em casa, não sobrava comida, mas ele levava um pão para a escola para dividir com quem não tinha. Se não tivesse desaparecido pela ditadura argentina, teria desaparecido pelo assassino Pinochet", indica Buscarita Roa, com quase 86 anos, em entrevista à Lusa na sede da Associação Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires.

Em 1971, ainda no Chile, num trajeto entre Santiago e Curicó, José Liborio Poblete Roa, o "Pepe", de apenas 16 anos, perdeu as duas pernas ao cair do comboio no qual viajava de forma improvisada para evitar o custo do bilhee.

"Quando eu lhe dei um beijo no hospital, ele disse-me: 'não chores, porque eu serei o primeiro homem a correr com uma perna ortopédica'. Quando voltou para casa no mês seguinte, disse-me que lhe cortaram as pernas, mas não a cabeça, que queria estudar Medicina e que iria começar uma nova vida na Argentina. Para mim, foi uma lição de vida", recorda.

O Chile era um país pobre e a vizinha Argentina tinha exemplares sistemas de Saúde e de Educação. José resolveu gastar toda a indemnização recebida da companhia ferroviária numa cadeira de rodas e numa viagem a Buenos Aires para um tratamento ortopédico. Um casal conhecido seria o anfitrião no começo da nova vida.

Em dezembro de 1975, Buscarita abandonou La Cisterna, a sul de Santiago do Chile, para ficar com "Pepe", levando os seus outros seis filhos. O dinheiro só chegou para dois meses de aluguer de um quarto com uma cama.

Márcio Resende

No instituto de reabilitação onde vivia, José conheceu a auxiliar argentina Gertrudis Marta Hlaczik, conhecida como "Trudi". Apaixonaram-se e José foi acolhido pela família da namorada. Logo depois, tiveram a pequena Claudia e mudaram-se para uma casa na periferia de Buenos Aires.

Em 28 de novembro de 1978, o casal e a bebé foram sequestrados pelos militares. Foram levados para o centro clandestino de prisão, tortura e extermínio de Buenos Aires, denominado "El Olimpo" pelos próprios torturadores, que se sentiam deuses sobre a vida dos 500 sequestrados pela ditadura argentina que por lá passaram, a maioria até hoje desaparecida.

"Eu cuidava da Claudia enquanto eles trabalhavam. Um dia fui buscar a bebé. Encontrei a casa destruída. As janelas partidas, a porta derrubada. Uma vizinha contou-me que um camião militar e uma viatura de Polícia tinham levado mãe e filha. Ele já tinha sido sequestrado antes no instituto", relembra Buscarita.

Dois dias depois, o então coronel Ceferino Landa, que não podia ter filhos, foi até o centro clandestino e levou a pequena Claudia. Apropriou-se da bebé, dando-lhe o nome de Mercedes Beatriz Landa Moreira. Criou-a como a sua própria filha até os 22 anos de idade.

Porém, só se descobriu para onde o casal foi levado após anos de investigações, já recuperada a Democracia na Argentina.

Segundo a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), Gertrudis e José foram "terrivelmente torturados".

Um dia, em 1978, ao passar pela Praça de Maio, Buscarita viu várias mulheres com lenço branco na cabeça. Curiosa, perguntou porque marchavam silenciosamente em círculos e descobriu que procuravam os seus filhos desaparecidos.

Nesse momento, Buscarita tornou-se uma Avó da Praça de Maio. Hoje, é vice-presidente de um dos mais famosos organismos de Direitos Humanos do mundo.

"Comecei a acompanhar as avós. Chorava e chorava. Não era fácil viver. As marchas eram para gerar visibilidade. Começaram a aparecer jornalistas do mundo inteiro. Foi assim que as mães e avós da Praça de Maio ficaram conhecidas", conta.

Graças às campanhas pelos meios de comunicação e por investigações da Justiça, uma denúncia anónima levou a uma jovem. A descrição do caso e as datas coincidiam. O resultado do exame de ADN, no começo de 2000, comprovou tratar-se de Claudia.

"Como dizer a uma jovem que ela era a minha neta? Eu disse-lhe 'sou a tua avó' e ela respondeu-me que não tinha avó. Foi precisa muita paciência", aponta Buscarita.

Claudia lembra à Lusa o que se passou do seu lado: "era tudo muito tenso. Fui preparada para não aceitar. Mas as fotos que me mostraram foram impactantes. Era eu. A mesma cara das fotos que eu tinha. Na minha casa, as Avós da Praça de Maio eram descritas como umas velhas loucas que perseguiam os militares, mas que, na verdade, tinham os filhos e netos a viver na Europa".

Enquanto o juiz explicava que Mercedes Landa era Claudia Poblete, os captores eram presos. Anos depois, seriam julgados e condenados. Claudia voltou para uma casa vazia.

"Eu não entendia nada. Sentia que o mundo se abria. Fiquei em estado de choque. Chorava e chorava. Fiquei preocupada com os meus raptores, que eram velhos e estavam doentes. Com o tempo, percebi que eles me mentiram todos os dias", conta Claudia.

De serem chamados de pai e mãe, passaram a ser tratados pelos nomes próprios até que um dia Cladia passou a referir-se aos que a criaram como "apropriadores". Os vínculos foram desfeitos aos poucos. Atualmente, Claudia já não tem contacto com o casal.

"Eles mantiveram a postura. Nunca se arrependeram. Não sentiram que deveriam arrepender-se. Eu sempre senti que tinha uma história estranha, que não batia certa. Os meus apropriadores eram muito mais velhos. Todos percebiam. Tinham quase 50 anos em 1978, mas eu nunca soube a idade deles. Sempre me ocultaram essa informação. Até escondiam os documentos. Tudo era muito controlado. Eu tinha uma vida muito restringida", descreve.

Para criar um vínculo diário com Claudia, que trabalhava perto da casa da avó, Buscarita comprou um micro-ondas para que a neta pudesse visitá-la todos os dias à hora do almoço, com o pretexto de aquecer a comida. Era como uma amizade.

Um dia, ao fim de cinco anos, avó e neta conversavam sobre a mãe de Claudia. Buscarita emocionou-se. Claudia abraçou-a e choraram juntas. Foi a primeira vez que Claudia se referiu a Buscarita como "avó".

"Eu senti que abraçava o meu filho. Eu vi o 'Pepe', vi a mãe dela. Senti que os dois estavam ali, juntos, a olharem para mim. Pensei 'filho, missão cumprida, aqui está a tua filha", desabafa Buscarita.

"Foi um momento muito genuíno. Foi o momento do 'clique'. O que eu senti nesse momento foi como não se pode recuperar 20 anos. Cada vez que eu a abraço, sinto que há algo que não podemos recuperar, mas, ao mesmo tempo, é um enorme privilégio e uma enorme alegria sentir esse amor incondicional", reflete Claudia.

Buscarita ainda procura o filho e a nora, tal como Claudia procura pelos pais.

"No fundo do meu coração, sei que mataram os dois. Mesmo assim, queremos saber onde estão os restos. Mesmo que seja um ossinho bem pequeno, seria uma bênção de Deus. Se puder tocar neles e dar-lhes uma sepultura cristã, já poderei morrer tranquila", emociona-se Buscarita.

"Recuperar os corpos permitiria ter uma ideia do que lhes aconteceu, de como foram mortos. Seria doloroso, mas ajudaria a fechar a ferida", conclui Claudia.

Dos 500 netos procurados pelas Avós da Praça de Maio, foram encontrados 133. Claudia foi a neta número 64.

Nos 50 anos do golpe militar de 11 de setembro de 1973 no Chile, a Embaixada do Chile em Buenos Aires inaugurou na semana passada um Memorial com os nomes dos 101 chilenos detidos, desaparecidos e executados pela ditadura argentina.