Mauro Paulino

Comentador SIC Notícias

Guerra Rússia-Ucrânia

Assistir à guerra à distância pode também resultar numa espécie de trauma coletivo

Quais são as consequências de uma guerra como a da Ucrânia na saúde mental? (Para quem a vive de perto e para quem assiste à distância)

Assistir à guerra à distância pode também resultar numa espécie de trauma coletivo

Apesar desta guerra estar a acontecer a milhares de quilómetros de distância, o facto de se travar em território europeu e de acedermos com regularidade a notícias sobre a situação leva a um maior sentimento de proximidade. Por isso, acabamos por vivenciar um conjunto de reações face à destruição visível nas imagens, o desespero dos que partem e o número crescente de mortes, não apenas de militares, mas também de civis, inclusive de crianças.

Ainda que todos tenhamos reações distintas a acontecimentos perturbadores e que cada um de nós tenha os seus recursos e formas diferentes de lidar com emoções e sentimentos negativos, é possível olhar para a investigação científica e identificar um conjunto de manifestações que se apresentam com maior incidência. Na verdade, as repercussões ecoam através das vidas individuais e, por vezes, ao longo de gerações.

Foto: Getty

Vários estudos longitudinais com refugiados realojados indicaram uma maior prevalência de taxas de depressão, de perturbações de ansiedade e de perturbação de stresse pós-traumático, as quais prevalecem entre os refugiados durante cinco anos ou mais após a guerra. Identificou-se também que o risco de ter uma perturbação mental grave é substancialmente maior nos refugiados de guerra do que na população em geral, mesmo vários anos após o seu restabelecimento. O aumento da vulnerabilidade tem sido associado tanto à exposição a traumas de guerra, como à separação da família, à habitação inadequada, ao desemprego e aos constrangimentos relacionados com o processo de se inserirem numa nova cultura (domínio da língua, por exemplo).

Estas condições estão associadas a elevados níveis de incapacidade funcional, carga global de doenças e custos médicos, exigindo uma melhor compreensão das especificidades da saúde mental dos sobreviventes de guerra. Foram identificadas como sintomas centrais as respostas de alarme e sobressalto, as emoções negativas relacionadas com traumas, os pensamentos intrusivos, a frieza emocional, a apatia e a reatividade fisiológica.

As crianças e a guerra

A propósito dos mais novos, a guerra expõe as crianças a perigos extremos e a experiências traumáticas que as colocam num risco significativo de desajustamento. Basta pensarmos que as crianças em áreas afetadas pela guerra são separadas de familiares, escolas e amigos, bem como podem testemunhar tortura e abuso de pessoas próximas. Também nesta faixa etária se apresentam maiores taxas de sintomatologia ansiosa, depressiva ou até mesmo virem a preencher os critérios da perturbação de stresse pós-traumático.

Foto: Getty
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Mesmo que as famílias sobrevivam, podem ser afetadas pelo trauma da guerra e terem de viver no rescaldo de experiências relacionadas com o sucedido, o que pode mudar as práticas parentais e ter impacto no stresse parental e na saúde mental. Os pais com problemas de saúde mental podem tornar-se irritáveis ou menos tolerantes à frustração. Resultados hoje conhecidos de outros conflitos armados mostram que a exposição à guerra comprometeu o ajustamento das crianças, em parte através da redução do afeto parental.

Por tudo isto, é fundamental que se ponderem políticas pós-conflito que visem principalmente as crianças expostas durante a primeira infância, para aliviar, ou potencialmente inverter, os efeitos adversos a longo prazo para a saúde causados pela exposição à guerra.

Uma espécie de trauma coletivo

Num outro registo, quem assiste à distância a esta guerra pode também vivenciar um conjunto de reações com impacto na dinâmica diária ou até mesmo resultar numa espécie de trauma coletivo. Não é um fenómeno novo, pois aquilo que aparentemente é algo local, circunscrito, é transformado pela comunicação social em algo global. No passado, ganhou destaque com o 11 de setembro de 2001, em que foram várias as pessoas que assistiram a esse acontecimento traumático pela televisão e desenvolveu respostas emocionais intensas e com declínio no bem-estar.

Por sua vez, famílias que tenham entes queridos a viver na Ucrânia ou na Rússia, ou que se tenham deslocado para lá em missão militar, estarão em maior risco de sentir um impacto emocional adicional. Ou seja, a probabilidade de desenvolverem ou verem agravadas dificuldades e problemas de saúde psicológica aumenta.

“A guerra afeta-nos a todos”

O tema tem merecido a maior atenção por parte de entidades com responsabilidades em matéria de saúde mental. Por exemplo, a Federação Europeia de Associações de Psicologia (EFPA) reuniu-se de urgência, no dia 03 de março, a pedido de associações de diversos países. A reunião terminou com a votação e aprovação, por grande maioria, de uma proposta sobre a expulsão da Sociedade Russa de Psicologia.

Consciente da forma como a guerra perturba a saúde psicológica e o bem-estar das pessoas e com o mote de que a “a guerra afeta-nos a todos”, a Ordem dos Psicólogos Portugueses avançou com um novo contributo para ajudar a gerir emoções e sentimentos em tempos de crise. Dias antes já havia disponibilizado um documento para ajudar pais e cuidadores a conversar com crianças e jovens acerca da guerra.

Especial Guerra na Ucrânia