Olhares pelo Mundo

Cicatrizes da guerra e tesouros milenares: o legado do Museu Nacional de Beirute

Palco de combates durante a guerra civil, o museu conseguiu proteger grande parte da sua coleção e hoje exibe peças que contam tanto a história antiga como a contemporânea do Líbano. 

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Cinquenta anos após o início da guerra civil no Líbano, o Museu Nacional em Beirute continua a ser um símbolo da resiliência do país, preservando não só artefactos milenares como as cicatrizes dos conflitos que marcaram o seu passado recente.

Quando a guerra civil do Líbano começou, a 13 de abril de 1975, o Museu Nacional do Líbano ficou no centro dos combates, com militantes entrincheirados entre sarcófagos e a disparar através de mosaicos históricos.

Hoje, estudantes e turistas percorrem os seus corredores, observando artefactos, alguns ainda enegrecidos pelas fogueiras acesas durante a guerra, e visitam uma nova ala, inaugurada em plena ofensiva entre Israel e o Hezbollah, em 2023.

Para muitos libaneses, o edifício não é apenas um guardião do património. É também um símbolo de resiliência e resistência cultural.

"Espero que estes jovens que aqui vejo saibam o que aconteceu neste museu em 1975, porque o que aqui se passou é digno de respeito", afirmou o ministro da Cultura do Líbano, Ghassan Salameh, em entrevista à Reuters durante uma visita de estudantes libaneses ao museu.
"Há o direito de esquecer. Os libaneses que querem esquecer a guerra civil, é um direito que lhes assiste. Mas há também o dever de recordar, para que não repitamos os mesmos erros".

Um museu no centro dos combates

O conflito começou quando milícias cristãs abriram fogo sobre um autocarro que transportava combatentes palestinianos, a poucos quilómetros do museu, inaugurado em 1942. Rapidamente, uma linha da frente se abriu perto do edifício, dividindo o leste e o oeste de Beirute.

Apesar do caos, o então diretor de antiguidades, Maurice Chehab, conseguiu salvar grande parte da coleção. Os artefactos mais pequenos foram transferidos e as peças maiores ficaram envoltas em betão armado, como medida de proteção contra os bombardeamentos.

"Durante a presença das milícias e a sua entrada no museu e antes destas peças serem armazenadas sob betão, algumas milícias dormiram, comeram e beberam aqui e alguns deles aqueceram-se aqui. Por isso temos, penso eu, quatro peças afetadas pelos incêndios que fizeram dentro do museu antes de o príncipe Maurice Chehab as proteger com betão armado", conta o ministro.

Ainda assim, pelo menos quatro peças principais ficaram danificadas. Uma delas é um mosaico do século V com um buraco do tamanho de uma bola de futebol - usado por atiradores para disparar sobre os rivais. Está hoje em exibição, como testemunho da guerra.

Do passado ao presente: uma nova guerra, uma nova ala

A guerra civil durou 15 anos. Mais de 100 mil pessoas morreram e centenas de milhares foram deslocadas. Em 1982, Israel invadiu Beirute. Nesse ano nasceu o Hezbollah, com a promessa de expulsar os israelitas do território libanês.

Décadas depois, em 2023, os combates entre Israel e o Hezbollah reacenderam-se. Durante quase um ano, o sul do Líbano foi palco de ataques aéreos e terrestres, até Israel intensificar a sua ofensiva, deixando o grupo armado bastante enfraquecido no final de 2024.

Enquanto o conflito se desenrolava, o Museu Nacional trabalhava na construção de uma nova ala para exposições temporárias. Durante as obras, arqueólogos descobriram dezenas de peças que Maurice Chehab tinha enterrado no quintal do museu, numa tentativa de as proteger.

O atual diretor de Antiguidades, Sarkis Khoury, falou à Reuters junto a uma parede ainda marcada por estilhaços da guerra civil. A decisão foi deixá-la como está, como memória visível da resiliência do país.

"As marcas que tornamos visíveis são lições para o futuro. O Líbano tem de ser um país de paz e de coexistência. Esta é a nossa história. O seu rosto está cheio de feridas e rugas, mas é um rosto bonito do Líbano", afirmou Khoury.

Um país sem memória oficial

A manutenção destas marcas no museu são uma exceção num país onde a guerra civil é frequentemente apagada. Muitos dos marcos do conflito foram abandonados ou demolidos para dar lugar a arranha-céus.

A administração do pós-guerra decretou uma amnistia geral para todos os crimes políticos cometidos durante o conflito. Hoje, os manuais escolares praticamente não mencionam a guerra civil.

Questionado sobre a criação de um museu dedicado exclusivamente a essa guerra, o ministro Salameh recusou a ideia: "A guerra civil só produziu destruição"

Ainda assim, mantém a esperança.

"Este país foi declarado morto dezenas, talvez centenas de vezes… Mas esta parte do Mediterrâneo continua de pé, com todas as suas especificidades e problemas".