Recordo o que me disse um missionário católico quando, em 2005, aterrei na Boavista, Estado do Roraima, para um trabalho sobre a realidade indígena. Revelei que, por coincidência, tinha viajado ao lado de um membro do governo estadual. O missionário ficou apavorado. "Pronto, eles já sabem, vai ser mais difícil". Tentei tranquilizá-lo explicando que queríamos também uma entrevista com o governador, ouvir todas as partes sobre o conflito entre os índios e os fazendeiros que ocupavam reservas. O religioso sorriu e esclareceu: "aqui não é possível ser imparcial, isso não existe, ou é a favor ou é contra, ou está com os explorados ou com os ricos".
Poucos dias após a nossa chegada, numa espécie de incitamento à hostilidade, um jornal de Manaus noticiava a chegada à capital do Roraima de jornalistas portugueses a expensas de interesses económicos norte-americanos ligados a organizações indígenas, com a intenção de expulsar os arrozeiros que criavam "riqueza" na reserva Raposa-Serra do Sol, a norte do Estado.
Os missionários católicos eram na altura um dos pilares da luta das tribos indígenas pelo direito à terra, pela preservação das reservas e da selva. Um braço importante na estratégia da Fundação Nacional do Índio - órgão oficial -, que passa por manter sempre um preventivo contacto com as vulneráveis tribos indígenas.
Nas entranhas da Amazónia, linha do Equador, mais a sul, o santuário natural dos Yanomami revelou-nos outra realidade e a importância humanitária da presença destes missionários. Sem perderem a identidade mitológica e os costumes que tanto seduzem os antropólogos, os Yanomami coabitam com a missão católica, mas, em mais de 40 anos de missão, nenhum fora batizado, nem era essa a preocupação dos missionários. Tivemos oportunidade de verificar que os Yanomami não entravam na capela da missão e que manifestavam até uma certa indiferença quando os padres e voluntários rezavam ao relento, passeando as laudes no despertar do dia. "A religião deles é a selva", explicou-nos um padre italiano, não há um "armário" de fórmulas e momentos para experimentar o inexplicável. Tudo se explica na fluidez da natureza, numa mitologia que garante a ordem e a harmonia, até no, embora residual, infanticídio, uma espécie de seleção natural feita pelas mulheres, em nome da sustentabilidade da tribo. Uma prática que, apesar de várias tentativas e estratégias, os missionários não conseguem evitar totalmente.
A ação dos missionários reveste-se de um grande pragmatismo. Estão, "em primeiro lugar, para garantir a preservação destes povos". A pergunta é então inevitável: Se o proselitismo está na matriz das Igrejas, como entender este exercício da evangelização que não vive obcecado com a conversão? A resposta foi pronta: "Ora, se tiver de acontecer, acontece, nem pensamos nisso". A atitude destes religiosos e voluntários católicos aparenta contrastar com uma certa forma ocidental de vivência religiosa, que vê a vida e o mundo a preto e branco, sob irredutíveis certezas e padrões.
Os confortos do mundo desenvolvido, como uma simples lanterna a pilhas, a criação de animais em cativeiro ou um microscópio para despistar a malária, com índios formados para esse trabalho, já chegaram às zonas mais secretas da selva, mas esta relação com o "homem branco" não é pacífica e há um histórico negro no rasto da mineração.
A missão está instalada perto das tribos e os índios contam com os missionários para repelir incursões dos exploradores de minério que, no passado, levaram a doença e a morte à selva, corromperam a cultura indígena, dilaceraram tradições. São comuns a bolsas de indígenas perdidos e desenquadrados nas cidades, tomados pelo alcoolismo, pela prostituição.
O drama da Amazónia está nas fronteiras da mancha verde, sob pressão agrícola e económica, pano de fundo para entender a catástrofe dos incêndios, mas vive-se também no coração da selva e na corrida aos recursos naturais.
O sínodo sobre a Amazónia não pode por isso fechar-se em conceitos e preconceitos estéreis para a realidade social, cultural e antropológica do objeto em análise. Reduzir o debate sobre a presença da Igreja católica à possibilidade de ordenação de homens casados - por mais relevante e urgente que seja, e é - para garantir os sacramentos quando não há sacerdote disponível, revelaria uma curta visão.
O debate prioritário, a ser feito por todos os intervenientes, incluindo Igreja e ONG's não religiosas, é sobretudo político e antropológico, pela emergência ambiental, pela necessidade de salvaguardar a diversidade natural e humana.
A tarefa não exige celibatários ou casados, apenas homens e mulheres disponíveis para respirar com plenos pulmões o ar cortante da selva. "Você aqui vai ao coração da existência", confessava um jovem católico de Málaga, voluntário na missão junto dos Yanomami.
Na Amazónia, o deus dos sentidos fala no mais ruidoso silêncio e não é preciso recorrer a interpretações teológicas para experimentar a Criação. Pela manhã, vislumbrando o sol nascente sobre as árvores e o Okapu que recolhe para deixar de atormentar os vivos, há uma eternidade que queima em cada revitalizadora inalação. Defender as lições da selva diante da ganância predadora e entender o mundo visível a partir desta interdependência, são já processos de conversão ao invisível.