Opinião

Como defender as salas de cinema?

Este é um tempo dramático em que o sucesso das plataformas de streaming não pode, nem deve, fazer esquecer a urgência de preservação e defesa do circuito tradicional das salas escuras — sobretudo em mercados de pequena dimensão como o português.

"2001: Odisseia no Espaço" (1968): quando as nossas tecnologias ainda eram ficção científica
"2001: Odisseia no Espaço" (1968): quando as nossas tecnologias ainda eram ficção científica

Todos sabemos que “2001: Odisseia no Espaço”, a obra-prima de Stanley Kubrick lançada em 1968, contém muitos elementos visionários. Pode discutir-se a maior ou menor “coincidência” de tais elementos com aquilo que, efectivamente, aconteceu no último meio século. Mas essa é uma questão secundária e, a meu ver, pueril. Mesmo os filmes de ficção científica, melhores ou piores, não são banais exercícios de “adivinhação”. Acontece que Kubrick soube oferecer-nos sinais premonitórios, não apenas dos “gadgets” da tecnologia, mas sobretudo do modo como, através deles, todas as relações humanas poderiam vir a ser alteradas.

Entre os vários exemplos que podemos rememorar, sou sempre levado a dar prioridade à breve e deliciosa sequência em que o cientista enviado à Lua, Heywood Floyd (William Sylvester), fala com a filha (interpretada pela filha do realizador, Vivian Kubrick), através de “video-phone”. A lógica de antecipação da situação é evidente — acima de tudo, há mais de meio século, fez-nos sentir que o futuro passaria (está a passar) pela reconfiguração das nossas próprias imagens.

Na dramática situação de pandemia e confinamento que estamos a viver, vale a pena evocarmos “2001” pela sua admirável visão da tecnologia, mas também pela sua insubstituível dimensão espectacular. Dito de outro modo: se não houver alternativa, aceder a “2001” através de uma plataforma de streaming não é, obviamente, um pecado irreparável (afinal, todos conhecemos “As Meninas”, de Vélazquez, mas nem todos fomos ver o quadro ao Museu do Prado, em Madrid). Mas também não é algo que nos deva afastar do essencial. A saber: é fundamental que as salas continuem a existir, não apenas por causa de “2001”, como é óbvio, mas em nome de todos os filmes: é aí, nas salas, que está a verdade mais insubstituível dos filmes e da história do cinema.

Daí a pergunta: face à pandemia, e depois da pandemia, como vão ser defendidas as salas de cinema? Eis uma pergunta que nenhuma política cultural, já delineada ou por definir, poderá evitar, sob pena de, directa ou indirectamente, penalizar todas as estruturas cinematográficas.

Não se trata, entenda-se, de desvalorizar, muito menos menosprezar, o boom do streaming a que estamos a assistir — observe-se, a esse propósito, a guerra económica que está a ser travada pelo domínio de gigantescos mercados como a Índia. Trata-se, isso sim, de recordar que em contextos tão pequenos (e também tão frágeis) como o português, importa atender aos interesses de todas as entidades envolvidas, de modo a reforçar a própria pluralidade da oferta que, nas últimas semanas, alguns distribuidores e novas plataformas têm protagonizado de forma meritória.

Nesta perspectiva, em nome da vitalidade do próprio mercado, seria salutar começar-se a pensar, desde já, num sistema oficial de contagem da frequência das plataformas de streaming. É uma medida profilática de conhecimento e gestão que, como sabemos, já existe, justamente, para as salas escuras.