Donald Trump perdeu nas urnas a 3 de novembro, já tinha começado a perder nos dias anteriores com o voto por correspondência, continuou a perder com a contagem dos votos e somou derrota atrás da derrota nas ações judiciais sem fundamento que insistiu em apresentar.
Não há memória de um candidato --- para mais em funções -- ter perdido tantas vezes a mesma eleição.
Mesmo assim, o ainda Presidente dos EUA não desiste de continuar a perder. Exorta os senadores republicanos a desrespeitar os tribunais e “continuarem a lutar”. Insulta o Supremo Tribunal (onde há um terço dos juízes foram nomeados por ele) com rótulos de “incompetente e fraco” à mais respeitada instituição americana.
Ameaçou “fechar” a capacidade do sistema de reagir à megacrise do coronavírus, adiando até à 25.ª hora, e depois de uma semana a falar em “lei que é uma desgraça”, a assinatura da promulgação do diploma saído do acordo bipartidário, que só validou depois de criar um caos desnecessário.
Trump agitou até ao fim o fantasma de não assinar a lei e só a 24 horas de deixar o governo federal sem instrumentos para atacar a crise económica gerada pela pandemia.
Larry Hogan, governador republicano do Maryland, desabafou: “Trump não devia ter feito esta demora num assunto tão sério como este”. “Nero mexeu em Roma. Trump foi jogar golfe”, sintetizou Dean Obeidallah na CNN. Tom Reed, congressista republicano da Nova Jérsia: “O Presidente deixou tudo para a última hora e provocou uma tremenda ansiedade nos dois lados da barricada”.
Ao fazer questão de perturbar ao limite a lei aprovada no Congresso por democratas e republicanos, Trump voltou a provar que só se preocupa consigo e não tem a mínima empatia com o sofrimento dos americanos.
“Abdicação de responsabilidade”, acusa Biden sobre este comportamento de Trump.
A “resistência” da Trumposfera à eleição clara e inequívoca de Joe Biden é absurda. Basta ver o que a Secretária da Educação da Administração Trump, Betsy DeVos disse há dias a um conjunto de conselheiros do seu ministério, funcionários do governo americano que não estão dependentes de nomeação política: apelou a que sejam “a resistência dentro da administração”, depois da tomada de posse de Joe Biden. Dava para rir. Mas não é o caso. Quanto mais se sabe mais vontade se tem de chorar e não de rir.
Os principais líderes do movimento ‘Make America Great Again’ prepararam as suas “tropas” para uma grande marcha sobre Washington no próprio dia 6 de janeiro, data da confirmação no Congresso da vitória de Biden.
Inspirados pelo seu líder, que insiste de forma irresponsável que ganhou as eleições, invocam o “Insurrection Act” -- lei de 1807, que só pode ser alegada nas circunstâncias mais violentas – para garantirem que Donald Trump nunca vai deixar de ser presidente dos Estados Unidos. O que é que essa lei prevê? Permite ao Presidente enviar tropas para reprimir a violência, mas não para anular eleições.
O problema é que não é só a turba furiosa e ignara que está a recorrer ao absurdo. O general Mike Flynn, o primeiro conselheiro de segurança nacional de Trump, que recebeu perdão presidencial por mentir ao FBI, apelou ao uso da lei marcial.
Como é que 70% dos eleitores Trump ainda acreditam que ganharam as eleições? Porque acreditam cegamente em Trump e ele continua a dizer isso.
Há aqui um problema de perversão do silogismo: 1) Donald Trump ainda é a face da principal instituição política americana, a Presidência; 2) é suposto confiar nas instituições; 3) logo, se Trump diz que as eleições foram fraudulentas e 74 milhões de americanos foram roubados, grande parte desses 74 milhões acreditam mesmo nisso.
Quatro anos depois de Trump ter batido inesperadamente Hillary, Donald sai da Casa Branca para a passar a Biden – que mais do que uma espécie de “Administração Obama 3.0”, tem preparado -- sobretudo nos postos que lhe serão mais próximos no trabalho do dia a dia -- uma equipa que faz lembrar a candidatura Hillary 2016.
Ron Klain, que será chefe de gabinete do futuro Presidente, teria sido o “chief of staff” de Hillary caso a atual administração tivesse tido a primeira mulher Presidente. Jake Sullivan, o Conselheiro de Segurança Nacional de Biden, seria, muito provavelmente, a escolha de Hillary para a mesma função (e teve papel idêntico na campanha 2016). O mesmo acontece com Brian Deese, diretor do Conselho Económico Nacional.
E ainda Neera Tanden, presidente do Centro para o Progresso Americano, filha de imigrantes indianos e uma das mais experientes conselheiras económicas do Partido Democrata: apesar de só ter 50 anos, teve papéis relevantes nas equipas económicas das candidaturas presidenciais de Mike Dukakis (1988), Bill Clinton (1992), Barack Obama (2008) e Hillary Clinton (2016). Será diretora da Gestão Orçamental da Administração Biden.
A escolha de Pete Buttigieg, 38 anos, terceiro classificado nas primárias do Partido Democrata, vencedor do "caucus" do Iowa e segundo classificado no New Hampshire, ex-mayor de South Bend, Indiana, apontado como um dos líderes da próxima geração dos democratas da ala "moderada" e centrista, para Secretário dos Transportes sinaliza a grande prioridade que Biden vai dar ao Plano de Reconstrução de Infraestruturas (promessa completamente falhada de Trump).
Trata-se do primeiro ex-rival de Biden nas primárias a ser escolhido pós vitória eleitoral de 3 de novembro – e pode ser uma alternativa, dentro da administração, ao favoritismo de Kamala Harris como provável nomeada presidencial democrata para 2024.
E revela, ainda, que Joe Biden está a apostar em gente qualificada e moderada, capaz de falar com rivais e adversários – e não em “radicais de esquerda”, demasiado ideológicos e a tender para agravar a fratura.
Os sinais de alarme sobre o que poderá passar-se atrás das cortinas nestas últimas semanas de Trump na Casa Branca estão todos a tocar.
Em incrível contradição com o seu próprio Secretário de Estado, Mike Pompeo, e outros “top officials” do Departamento de Estado, Donald Trump sugeriu que a China (e não a Rússia) estaria por trás do grave ciberataque perpetrado contra os Estados Unidos há cerca de uma semana.
O ainda Presidente dos EUA chegou mesmo a minimizar o impacto dos ataques – que atingiram sistemas informáticos de instituições políticas e de grandes empresas privadas --, em mais uma desautorização ao complexo de inteligência americana (algo que fez demasiadas vezes neste mandato bizarro): “O Cyber Hack é bem maior na Fake News Media do que realmente aconteceu. Fui informado ao pormenor e tudo está bastante sob controlo (…) Os Fake News Media estão muito assustados com a possibilidade de ter sido a China (e pode ter sido!)”.
Ora, não há qualquer evidência que tenha sido esse o caso. Todas as indicações apontam para que tenha sido um dos maiores ataques cibernéticos de sempre da Rússia aos EUA – e o que voltou a acontecer foi uma preocupante colagem de Donald Trump à narrativa desvalorizadora de Vladimir Putin.
Tal como aconteceu em Helsínquia (talvez um dos pontos mais baixos da história presidencial americana, com Trump a dar razão ao líder de uma potência rival enquanto deslegitimava todo o trabalho de investigação feito pelos serviços de informação e inteligência norte-americanos), Trump deu, neste caso do grave ataque cibernético de que os EUA foram vítimas, mais um sinal preocupante de que estará mesmo fortemente condicionado em relação aos interesses de Putin.
O fim da presidência Trump corresponde ao aparecimento da vacina – mas também à pior fase de sempre da pandemia, no país que apresentam valores mais altos de novos casos e de mortes/dia.
Há um 11 de Setembro a acontecer diariamente nos Estados Unidos com a pandemia. As mortes diárias por COVID em solo americano têm estado acima das 2500 – chegou a haver, a 9 de dezembro, 3095 óbitos atribuídos à pandemia nos EUA. Ora, nos atentados do 9/11 morreram 2996. Só um tornado em 1900 e um da Guerra Civil, em 1862, tiveram mais mortos por um só acontecimento num só dia nos Estados Unidos.
Um dos principais desafios de Joe Biden é conseguir, de preferência nos primeiros 100 dias, associar uma maior seriedade na assunção do problema, colocando os cientistas no topo do combate, com uma maior eficácia na travagem da pandemia.
Os especialistas avisam que é quase inevitável que os números continuem a crescer até ao final de fevereiro. Mas à medida que a vacinação começar a ter efeitos na imunidade nos grupos de maior risco, será fundamental que a partir de março, ainda dentro do “prazo de 100 dias”, a Administração Biden apresente resultados de melhoria na prevenção da COVID-19 e, com uma menor ameaça sanitária, tenha condições reais de partir para a recuperação económica.
Tenho dito e escrito, por estas semanas de transição presidencial na América, que estive sempre, ao mesmo tempo, receoso a curto prazo mas muito confiante e otimista a médio/longo prazo com o que iria acontecer nos Estados Unidos.
Receoso porque é, obviamente, perturbador assistir como foi possível que os EUA tenham caído na armadilha de ter eleito para Presidente alguém que desrespeita desta forma tão descarada a Democracia.
Mas muito otimista no essencial – porque o que aquele grande país está a provar, uma vez mais, é que é tão forte e resiliente que até consegue resistir à ameaça criada pelo seu próprio Presidente e respetivos apoiantes.
A 3 de janeiro, o novo Congresso tomará posse.
De maioria democrata na Câmara dos Representantes e pequena maioria republicana no Senado, provavelmente 51-49, ou então empate total 50-50, com possível desempate democrata com o voto de preferência da vice-presidente Kamala Harris, vai depender da segunda volta no Senado da Geórgia, que só se realizará dois dias depois.
E pouco depois, a 6 de janeiro, sessão conjunta das duas câmaras do Congresso e presidida pelo vice-presidente Mike Pence fará a contagem oficial dos Grandes Eleitores obtidos por Biden e Trump, que levará à confirmação de Joe Biden como Presidente e Kamala Harris como vice-presidente.
Cada congressista pode objetar – é muito raro tal acontecer (no último meio século, só aconteceu duas vezes, uma em 1969 e outra em 2005, sempre sem sucesso), mas é de prever que alguns congressistas republicanos da Câmara dos Representantes, que se têm mantido leais a Trump, o façam.
Paul Mitchell, congressista republicano do Michigan, já garantiu à CNN, que vai objetar à confirmação de Biden a 6 de janeiro. O recém-eleito senador Tommy Tuberville, do Alabama, republicano muito próximo da “Trumposfera” também estará a ponderar fazê-lo.
O que pode acontecer? A sessão vai apreciar, durante uma hora, as alegações que o congressista Mitchell e o senador Tuberville possam ter.
Atendendo a tudo o que aconteceu até agora nos tribunais e no Colégio Eleitoral, obviamente a objeção será recusada.
Onésimo Teotónio de Almeida, um dos portugueses que melhor pensa sobre a América, disse numa conferência há três anos, no Porto: "Tudo o que ouviram dizer sobre os EUA, sejam as coisas ótimas ou as péssimas, provavelmente é verdade. Ou então virá a ser”.
Depois de quatro anos de um Presidente que andou a brincar com coisas sérias (legitimação dos Proud Boys) e lançou fogo onde devia ter lançado água (insistência na “fraude” mesmo sem a mínima prova), os americanos escolheram alguém pouco carismático mas com perfil para baixar o tom da berraria.
Do mesmo modo que Lyndon Johnson deixou legado mais efetivo que John Kennedy, Joe Biden pode ser uma surpresa que a História revelará com o tempo.
Nunca chegará ao carisma de Barack Obama, mas talvez consiga atingir o que muitos dizem ter sido frustrante no legado do primeiro presidente negro da América.
Acima de tudo, depois do disparate Trump será reconfortante voltar a ver adultos na sala naquela que (ainda) é a Administração mais poderosa e influente deste mundo entalado entre a transição e a perturbação.
Valha-nos isso.