Luís Aguilar

Comentador SIC Notícias

Opinião

Cantona, polícias nervosos e o inferno do Galatasaray

Opinião de Luís Aguilar, comentador SIC.

Cantona, polícias nervosos e o inferno do Galatasaray
Tom Jenkins

O Galatasaray já não é o que era. Mas os adeptos são sempre loucos. E muito intensos. Demasiado intensos, por vezes. Que o diga Éric Cantona e a equipa do Manchester United de 1993/94.

Os reds jogam com os turcos na segunda eliminatória da Champions para tentar a entrada na fase de grupos, então composta por apenas oito equipas. São favoritos. Claramente. Afinal, têm uma equipa de estrelas: Schmeichel, Paul Ince, Bryan Robson, Roy Keane, Mark Hughes e, claro, Cantona. Ainda se juntam uns rapazes que começam a aparecer nessa altura: Giggs, Beckham, Gary Neville ou Paul Scholes.

Ao leme deste grupo, Sir Alex Ferguson. No campeonato é tudo deles. Lideram com grande margem e preparam-se para revalidar o título. Falta alargar a boa forma à Europa. E há esperança. Muita esperança. Mas começa a correr mal. A primeira mão em Old Trafford acaba com um empate. Pior ainda: Schmeichel agarra num adepto turco que invade o campo e atira-o ao chão. Os ânimos estão incendiados. No final do jogo, o técnico alemão do Galatasaray, Reiner Hollmann, deixa o aviso para a segunda mão: “Eles vão estar à vossa espera no aeroporto.”

Promessa feita, promessa cumprida. Os jogadores do United aterram em Istambul e são recebidos por centenas de turcos com cânticos furiosos e cartazes intimidatórios. Um deles: “Bem-vindos ao inferno.” Outro: “A estrada acaba aqui.” Não se percebe se a referência é sobre as esperanças europeias do United ou acerca da vida dos seus jogadores. Um dos adeptos aproxima-se do defesa Paul Parker e esclarece todas as dúvidas: “Vais morrer.”

No dia seguinte, Alex Ferguson desvaloriza a recepção perante a imprensa britânica: “Ambiente pesado? É óbvio que vocês nunca viram um casamento em Glasgow.” Mas os turcos não estão para brincadeiras. O médio Gary Pallister sente essa animosidade quando se prepara para entrar no hotel da equipa e sorri para um jovem paquete como forma de cumprimento. Este olha para ele e passa o dedo pela garganta, no gesto de ameaça de morte.

Os adeptos do clube de Old Trafford acabam por ser as primeiras vítimas deste clima de terror. Na noite anterior ao jogo, cerca de 160 ingleses são agredidos pela polícia e atirados para celas. Muitos ficam detidos na prisão de Bayrampasa, famosa pelo filme “O Expresso da Meia-Noite”, e só têm ordem de regressar a casa passado um mês.

Chega o grande dia. Os jogadores do United pisam o relvado para uma visita de reconhecimento e as bancadas já estão cheias de turcos. “O barulho mais incrível que ouvi na minha vida”, revela Gary Neville, mais tarde, que nessa altura tem apenas 18 anos. Tudo está preparado para que a formação de Manchester viva uma noite de terror. A começar pela equipa do Galatasaray, composta por várias figuras da selecção turca, entre os quais Bulent Korkmaz, Tugay e o goleador Hakan Sukur.

A equipa da casa é superior durante grande parte do encontro e consegue arrastar o nulo no marcador (beneficiando da vantagem dos golos fora) com vários truques para queimar tempo. Cantona começa a descontrolar-se. Aos 77 minutos, aproxima-se do

guarda-redes suplente do Galatasaray, que tenta atrasar um lançamento lateral, e arranca-lhe a bola das mãos, afastando-o, de seguida, com uma cotovelada. O árbitro perdoa a expulsão nesse momento, mas acaba por mostrar o cartão vermelho ao francês com o jogo a terminar. É aí que começa a confusão. O episódio é contado na biografia de Bryan Robson, médio do United e capitão da seleção inglesa naquela época: “Quando o árbitro apitou para o final, consegui ver nos olhos do Éric que ele estava passado.”

O colega de equipa leva Cantona pelo braço para fora do relvado. Ambos são acompanhados por um polícia até às escadas de acesso aos balneários. “Estava prestes a agradecer ao agente que nos levou quando ele agride o Éric sem qualquer explicação. O Éric tropeçou em alguns degraus e eu virei-me para dar um soco naquele polícia”, escreve Robson. “Assim que tentei, levei com um escudo nas costas e bati com o braço na parede.”

Sangue, gritos e muitos nervos. Cantona tenta voltar atrás e lutar com os polícias, mas nesse momento chegam mais jogadores do United que acabam por impedi-lo. O próprio Alex Ferguson vai com intenção de acalmar os ânimos, mas parece pronto para tudo. Despe o casaco e aproxima-se da sua equipa. “Estavam ali muitos polícias, com grandes rottweilers a ladrarem para nós”, conta Steve Bruce, então capitão dos reds, numa entrevista ao Daily Mail em 2016. “Ferguson aparece aos gritos. Tem o cabelo em todo o lado, a gravata por cima da orelha e diz-nos: ‘Nenhum de vocês esteve a lutar, pois não?’ Respondemos todos que não. Depois disso, ele foi dizer ao mundo que os seus jogadores tinham sido agredidos pela polícia.”

Os vários detalhes desta noite são partilhados na autobiografia de Roy Keane, lançada em 2012. “Nos balneários, o Éric estava louco. Enquanto todos nós só queríamos sair dali, ele queria voltar atrás e acertar contas com o polícia que estava lá fora a agarrar no cassetete.” Cantona confirma a história anos depois: “A polícia devia proteger-nos e ele ‘protegeu-me’ pelas costas. Bateu-me e desapareceu, desapareceu como um homem fraco. Tenho a certeza de que as imagens desse vídeo devem estar em algum lugar, mas eles [Galatasaray e televisão turca] dizem que as perderam. Muito conveniente.”

Roy Keane é conhecido por ser um jogador duro, sem medo de confrontos, mas naquele momento prefere ficar quieto: “O Éric era um tipo grande e forte. Ele estava a falar a sério e insistia que ia matar ‘aquele c…’. Foram precisos os esforços combinados do Brian Kidd, treinador adjunto, e de mais alguns jogadores para conseguirem travá-lo. Nunca fui pessoa de recusar uma luta, mas nem eu me sentia preparado para uma como esta. Estavam muitos turcos lá fora!”.