Opinião

A Seixalíada de Martínez

No jogo em que garantiu a qualificação direta para o Europeu, em pleno Dragão, o selecionador chegou a ter no onze meia-dúzia de jogadores formados pelo Benfica. O triplo do que fizera Fernando Santos nas “finais” com Turquia e Macedónia

A Seixalíada de Martínez
JOSÉ SENA GOULÃO

O João e a seleção. Podia ser o título de um livro para todas as idades e sobretudo para todos aqueles que aspiram um dia estar em frente a uma multidão a cantar o hino nacional e a representar o onze principal de Portugal.

Para Roberto Martínez, seria também um bom (vá lá, razoável) título para ilustrar a obra que tem escrito na Cidade do Futebol e que na última noite culminou com mais um recorde em Zenica.

Em território bósnio, Cristiano (fala-se de recordes, fala-se do capitão) abandonou de bom grado o número 7 e, a exemplo dos restantes colegas, entrou para a história com o oitavo triunfo seguido em jogos oficiais e com os 9 golos na fase de apuramento, num impressionante total de 127 com as cinco quinas ao peito.

Na mesma noite em que se comemoraram 38 anos sobre o épico pontapé de Carlos Manuel em Estugarda que devolveu Portugal a um Campeonato do Mundo, os remates certeiros de CR7 (ou CR9, já agora, para relembrar 2009 e a chegada ao Real Madrid), de Bruno Fernandes, de João Cancelo e de João Félix solidificaram mais uma proeza estatística e sobretudo reforçaram a convicção de que o grupo predileto do selecionador dificilmente vai suportar o aparecimento de grandes novidades quando forem divulgados os 23 para o Alemanha’24.

Em termos práticos, os números acabam por validar a tese de defesa de Roberto Martínez, esboçada com o sorriso de sempre quando a 1 de setembro surpreendeu metade do país ao excluir da lista para os desafios com a Eslováquia e o Luxemburgo nomes como os de Nuno Santos, Paulinho ou Bruma. No “lugar” dos jogadores que estavam em belíssima forma no Sporting Clube de Portugal e no Sporting de Braga apareceram os Joões que tinham acabado de se estrear com a camisola do FC Barcelona, com Félix a provocar uma incredulidade maior em comparação com a chamada de Cancelo, que já na altura beneficiava de escassa concorrência para a posição.

Logo na primeira convocatória de arranque da nova temporada, o antigo responsável pela Bélgica deixou sinais fortes a propósito de uma blindagem muito particular do balneário apesar de nas conferências de imprensa se desfazer em elogios a atletas que verdadeiramente nunca foram uma opção. Um pouco à semelhança do que acontece com tantos colegas que lideram os gabinetes técnicos de Federações, o espanhol prefere jogar quase sempre com os mesmos, privilegiando rotinas adquiridas mesmo que isso lhe custe a renúncia de um ou outro... João (Mário).

Os últimos assobios

Este João trintão, dois meses depois de ter festejado 30 anos, ainda conseguiu entrar aos 85 minutos na vitória por 4-0 sobre o Liechtenstein alcançada em pleno José Alvalade, mas os assobios que marcaram a entrada em rendição de Bruno Fernandes acabariam por sonorizar a sua despedida da equipa nacional e para cúmulo no estádio do clube onde cumpriu a maior parte do crescimento profissional. Por ironia e mesmo que isso tivesse passado completamente ao lado dos especialistas do assobio, o lançamento ingrato de João Mário acabou por permitir ao Sporting pela primeira e última vez ostentar cinco jogadores da formação num onze dirigido pelo sucessor de Fernando Santos.

A 23 de março deste ano, na tal goleada em Alvalade, o quinteto composto por Rui Patrício, Gonçalo Inácio, João (mais um...) Palhinha, Rafael Leão e... João Mário terminou o desafio exibindo uma “quota” verde que jamais voltaria a ser replicada durante esta fase de apuramento para o campeonato da Europa. É verdade que Alcochete, a escola dos leões, no que diz respeito às escolhas iniciais do selecionador, continuou a oferecer registos bastante interessantes no jogo seguinte (Rui Patrício, Nuno Mendes, Palhinha e Cristiano foram titulares a 26 de março no Luxemburgo), sendo que o Grão-Ducado significou igualmente o fim da “era Rui Patrício” enquanto dono da baliza para... salvaguarda da representação azul e branca (leia-se do Olival) na seleção.

E um primeiro Diogo

Assim que voltou a estar fisicamente disponível para Portugal, Diogo Costa cumpriu o papel que já tinha sido do outro Diogo (Dalot) no 0-6 aos luxemburgueses e é no estádio da Luz que a 17 de junho frente à Bósnia se apresenta no onze como o único elemento formado pelo FC Porto. As presenças, na linha inicial, de Raphael Guerreiro, Danilo Pereira e Bruno Fernandes, qualquer um deles sem escola pura e dura nos “grandes”, acentuou na Luz a preferência de Roberto Martínez pela matéria-prima esculpida no Seixal, com Rúben Dias, António Silva, João Cancelo, Bernardo Silva e João Félix a fazerem as despesas de meia equipa de campo.

Para delícia de todos aqueles que nunca o viram como um mero defesa-esquerdo ou um simples ala-direito, Bernardo assumiu as honras da inauguração do marcador, rubricando o primeiro dos três golos nas redes de Ibrahim Sehic (ontem sofreu cinco) e o... último da sua série também de três golos nesta fase de qualificação. Em Alvalade e no “Stade”, o canhoto do Manchester City mostrara os seus dotes de goleador embora se tenha revelado incapaz de acompanhar na Luz a precisão da dupla formada por Cancelo e Cristiano, com qualquer um destes a escolher o minuto 8 para abrir as hostilidades diante do Liechtenstein e do Luxemburgo.

A alternância de sistemas e a variabilidade tática promovidas por Roberto Martínez potenciam a tendência de Bernardo para se aproximar das zonas interiores e de apelo maior à definição, o que deixa facilmente entender por que motivo Xavi Hernández fez tanta força junto de Laporta para garantir já esta temporada o criativo português em Barcelona. Ao entender-se às mil maravilhas com o polivalente defesa, seja numa lógica defensiva de três unidades ou numa defesa a quatro (e isto partindo do princípio de que a equipa irá lutar pela recuperação do título europeu com um lateral esquerdino), o baixinho adorado por Guardiola foi sempre titular até Zenica e conseguiu inclusivamente “sobreviver” à viagem mais agreste para os internacionais com carimbo-Benfica.

Levando em consideração os oito jogos disputados até agora por Portugal, a “quota” mais baixa do Seixal no que toca às primeiras escolhas foi registada na Islândia, quando Rúben Dias, Cancelo e Bernardo dividiram a “representatividade” na seleção com o jovem contingente do Olival composto por Diogo Costa, Diogo Dalot e Rúben Neves (ontem acompanhados por Vitinha na segunda parte com a Bósnia). Um golo de Cristiano como se fosse a última gota a deslizar pela cascata (já para além dos 90 minutos) desempatou o torneio interescolas, garantiu mais três pontos em Reiquiavique e permitiu ao treinador centrar-se em julho e em agosto na perspectiva de assegurar em casa a qualificação automática para a fase final do Europeu.

O prometido Neves e a bênção para João Paulo

Com toda a naturalidade, depois da magra vitória em Bratislava (Bruno Fernandes quis assinalar o 29º aniversário com um golo solitário) e do faustoso banquete no Algarve (os tais 9-0 ao Luxemburgo sem... Ronaldo), foi precisamente no Porto que a seleção voltou, ano e meio depois, a oficializar a comparência nas megacompetições. Em março de 2022, ainda com Fernando Santos no banco, Portugal venceu em dose dupla no Dragão a Turquia por 3-1 e a Macedónia do Norte por 2-0, com um certo... Bruno Fernandes a bisar no jogo que selou em regime de “play-off” o apuramento para o Mundial do Catar.

Uma... certa dupla, formada por um tal Cancelo e um tal Bernardo, esgotou a representatividade do Seixal entre os titulares escolhidos pelo engenheiro, em claro contraste com aquilo que foi decretado por Roberto Martínez no mesmo estádio e na última sexta-feira. Diante da Eslováquia, António Silva, Rúben Dias, Cancelo, Bernardo e Gonçalo Ramos iniciaram o duelo e aos 65 minutos coube a Félix render Rafael Leão. Ou seja, durante 21 minutos (até ao momento em que Bernardo deu o lugar a Otávio), seis jogadores formados no Benfica atuaram no relvado do Dragão, triplicando, assim, a “quota” de março do ano passado.

Como destacou Félix, o público da casa deu uma lição e ninguém assobiou. Qualquer João é sempre bem-vindo na equipa de todos nós. Desde o Neves que esta segunda-feira se estreou aos 19 anos até àquele que responde por João Paulo Dias Fernandes. E que no livro da seleção só figurou fugazmente como Paulinho.