Opinião

Amigos para a vida sem que a morte nos separe

Levantei-me um pouco mais tarde naquele dia. A minha mulher já estava acordada e com voz preocupada disse-me: vê lá a respiração do Boogie. Acedi prontamente, ainda com a visão turva da noite de repouso, e confirmei: algo estranho se passava.

Amigos para a vida sem que a morte nos separe

O nosso primeiro gato, aquele que nos arrebatou o coração com a sua doçura e meiguice imensurável, estava doente e parecia ser grave. Dali até à sua morte foi uma questão de três semanas.

Lidar com a finitude da vida é sempre um desafio, quer estejamos a falar de pessoas ou animais. Mas quando pensamos em acolher um animal em nossa casa não pensamos propriamente que ele um dia também se irá embora. E que vamos chegar a casa e a sua cama está vazia. O abrir da porta e não tê-lo a esfregar-se entre as nossas pernas. O seu ronronar ao colo nas noites de séries no sofá.

Adotámos o Boogie numa altura que, para muitos, talvez não fosse a mais óbvia: íamos ter um bebé. Mas para mim era claro que, se estávamos a constituir uma família, a fazê-la crescer, nada melhor que um amigo de quatro patas que acompanhasse esse crescimento com a nossa filha.

Para além dele, seguiu-se a adoção da Pixie, na Associação São Francisco de Assis, porque os gatos são mais felizes se tiverem companhia. A família estava oficialmente a crescer. Já tínhamos dois anos de casa, aquela casa "de revista" decorada e imaculada, sempre pronta para receber amigos. Mas tudo estava prestes a mudar. Seguiram-se as arranhadelas no sofá, a areia espalhada pela zona da casa de banho, as plantas roídas, coisas atiradas ao chão... fora o que se seguiu após o bebé nascer.

As preocupações das várias pessoas, inclusivamente do veterinário, quando viram que além de adotarmos um gato, estava um bebé a caminho, não eram de todo descabidas. Porque um animal que chega, requer muita dedicação e atenção. Alteram-se as rotinas, aumentam as despesas, tudo somado a um filho que faz exatamente o mesmo, apesar de, a meu ver, numa escala bem maior.

Mas os gatos cresceram e as filhas também. Gerimos os desafios que iam surgindo o melhor que soubemos e adaptámo-nos todos uns aos outros, dentro da (dis)funcionalidade normal que é ser família.

As brincadeiras, os colos, o aquecer de pés na cama, fez tudo parte da nossa história. Lembro-me bem das tardes de PC no colo, a preparar as sessões de coaching vocal para os meus clientes e ver gatos a passar por cima do teclado ou a querer deitar-se por cima das teclas. Para um gato, porque não?

Foram 9 anos de uma bola de pêlo que nos acarinhava e que nunca se queixava de todas as traquinices pelas quais passava com as crianças.

Ninguém nos prepara para a morte repentina de um animal. Depois de duas semanas de testes e internamentos, chegou o diagnóstico. Era cancro e estava nos pulmões. Não havia grande coisa a fazer. De repente, surgem as memórias de todos os momentos juntos. Olhando para trás, se a pandemia de Covid-19 teve algum lado positivo foi o de ter podido passar mais tempo com ele em casa, coisa que de outra forma provavelmente não aconteceria.

Com a morte de um animal, neste caso, até relativamente jovem, surgiram várias questões: a gestão da tristeza própria do vínculo que se criou com ele, a explicação às crianças de que o seu amigo já não voltaria para casa, sem terem tido oportunidade de se despedir, a incerteza da melhor decisão a tomar relativamente ao outro gato que fica e que cresceu acompanhado, mas que provavelmente terá dificuldades em aceitar um outro companheiro devido ao seu temperamento. Um baque, um choque, um turbilhão. Um dia de cada vez.

A tristeza foi-se dissipando com a correria dos dias, dando lugar a um sentimento de saudade e gratidão pelos momentos vividos e partilhados.

Com as crianças fizemos um pequeno ritual de despedida. Imprimimos uma fotografia do Boogie e à volta escrevemos palavras que o caracterizavam, à luz de cada um dos elementos da nossa família.

Quanto à Pixie, que perdeu o seu amigo, depois de muito ponderar e de darmos espaço e tempo ao luto necessário, adotámos o Freddy com um ano, que veio virar a nossa casa, novamente, ao contrário.

Não tive grandes perdas ao longo da minha vida e perder o Boogie não foi fácil. Porém, o sentimento de sabermos que o acolhemos, o acarinhámos e lhe proporcionámos uma vida feliz, dá-nos alguma paz e tranquilidade.

A tristeza esmorece mas as lembranças são mais que muitas. Afinal, parece que a frase "um animal é um amigo para a vida" não é apenas um cliché e nem a morte anula esta amizade.

Só não sabemos a duração que terá, por isso, é aproveitar cada dia e saborear ao máximo para que no final possamos ficar com o sentimento de que valeu a pena. Por agora, é continuar a criar novas memórias, com o Boogie no coração.

Texto de André Rodrigues da Costa