Augusto Gil não era um poeta maior. Não era um original, nem os seus escritos de modo algum pioneiros. Na verdade, repetia algumas fórmulas simbolistas populares que, não obstante, faziam as delícias literatas tão ao gosto da sua época. Contudo, um dos seus poemas, “A balada da neve”, resistiu à falta de originalidade e permaneceu na memória de todos, especialmente depois de ter sido, décadas depois, popularizado pelo grande João Villaret, primeiro na rádio, depois na televisão.
Um verso em especial tocava fundo o coração do leitor: “Mas as crianças, Senhor”. Pezitos miniaturais na neve, “primeiro bem definidos e depois em sulcos compridos”, é uma imagem tão pungente que, uma vez proferida, se torna indelével. ”Porque lhes dais tanta dor?!… “.
E é talvez por causa desta adúltera amálgama que todos fazemos de tudo o que sabemos, que nos salta à memória este pequeno verso.
As insuportáveis imagens de crianças a fugir da Ucrânia
São insuportáveis as imagens que nos chegam de crianças a fugir da guerra da Ucrânia. Não são, de maneira nenhuma, novas, bem o sabemos. Já as conhecemos desde que Nick Ut foi ao Vietname. Desde então centenas de outras fotografias tragicamente icónicas se seguiram, percorrendo escrupulosamente todos os continentes, todos os tempos recentes.
A imagem do rapaz arrastando um saco de plástico a atravessar sozinho a fronteira com a Ucrânia, num pranto imparável. A imagem de crianças russas presas numa carrinha da polícia por participarem numa manifestação em Moscovo contra a guerra. A imagem de miúdos retirados de orfanatos ucranianos e atafulhados em autocarros. A imagem de um bebé que conseguiu resgatar-se de uma rede de tráfico que se estima neste momento que vá já em cerca de cinco mil crianças raptadas. A imagem do rapaz cujo olhar nos confessa a inconfessável certeza de que não voltará a ver o seu pai, ontem professor, hoje soldado.
“O pequeno herói” de 11 anos atravessa fronteira para a Eslováquia sozinho
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Não é possível compreender propósito mais premente e válido para que os portugueses tenham convocado toda a sua generosidade senão para acudir a estas crianças. São elas, nesse sentido, a razão primeira da inverosímil cumplicidade que se estabeleceu entre portugueses e ucranianos.
Como pode, aliás, entender-se que, depois da demasia emocional de Pedrógão e da infâmia, o vexame, que se lhe seguiram, possa ainda restar nas veias dos portugueses um latejar de coração que os leve a agir desta forma tão benévola, uma vez mais? O que os move? Não é o exemplo mártir de um líder contingente, ou uma proximidade geográfica, ou a vizinhança quotidiana dos imigrantes ucranianos, ou o obsoleto obsceno de uma guerra cega e irracional, ou um antisovietismo esconso ou um anticomunismo desalumiado.
São as crianças, Senhor Putin.
Toca-nos a todos o arcaísmo do “Mulheres e crianças, primeiro” que não pode ter lugar neste mundo, neste tempo. Esta é uma guerra entre o exército russo de um lado e, do outro, pais, irmãos e filhos ucranianos que podiam ser, como são, os nossos.
Somos todos esse drama
De repente, todos somos, homens e mulheres portuguesas, um homem de 18 a 60 anos que tem de tomar decisões impossíveis. Uma mulher que beija o marido pela última vez. A miúda que olha o irmão mais velho pela janela chorada de um comboio. Somos a angústia daquele homem que manda a família para longe e fica a defender a sua terra, como ele mesmo se exige. Somos o dilema do imigrante que tem de decidir se fica em Portugal com a sua família, aquela que arrastou consigo para procurar uma vida melhor, ou se volta de imediato para a Ucrânia para se juntar às milícias de voluntários. Somos todos esse drama. Por tudo o que esse drama tem de nosso. De humano e universal. De plausível. O que os leva a tomar a decisão derradeira são as crianças, Senhor Putin.
E ei-las que nos chegam agora às carteiras de escolas com as paredes cobertas de centenas de bandeiras da Ucrânia. “Estamos convosco”. “Stop the war”, “Slava Ukraini” escrito por todo o lado. Ei-las que nos chegam. Crianças povoadas de trauma e de terror, que nos agradecem, pasmadas e entorpecidas, cheias de nada e de tudo.
Qual é também o limite do cinismo cosmopolita que nos leva a pretender que tudo isto não passa de exercícios de propaganda e de contrapropaganda? Que tudo é estratégia de comunicação de guerra, contrafacção informativa, preferindo de longe que o seja, nem que seja apenas para não ter de pensar nestas crianças, nestes trilhos de pés “miniaturais” da neve eslava?
Sim, a NATO não cumpriu o que acordara com a queda do muro de Berlim e expandiu a sua rede de posições militares para junto das fronteiras com a Rússia.
Sim, entre muitas outras, a crise de Cuba foi provocada exactamente por causa dos mesmos justificados receios da presença de mísseis no quintal do vizinho.
Sim, a Ucrânia é um Estado de Direito disfuncional. Sim, entre os 450 lugares do Parlamento ucraniano apenas um neonazi tem assento. Sim, as pretensões separatistas do Leste da Ucrânia representam uma russofilia de conveniência que não pode ignorar-se.
Sim, a China não pode opor-se à invasão russa porque tem Taiwan e os cinco dedos do Tibete por desenclavinhar.
Sim, a China é a única redenção toxicodependente do isolamento a que Putin condenou o seu país.
Mas como pode uma nação como a magnífica Rússia desprezar tão estuporadamente uma história como a sua, uma cultura como a sua, que partilha com o sofrimento humano uma afinidade tão íntima e essencial, como a que Tolstoy, Tchaikovsky, Solzhenitsyn, Scriabin nos ensinaram e continuarão a ensinar por muitos séculos?
Como convive Chekhov com o desfile quotidiano de carros blindados que atropelam carros civis em andamento. Como vive Stravinsky com as mãos nuas que resistem às colunas russas de camiões militares?
Onde consagra Dostoyevsky uma política de guerra de terror bruto, bárbaro, com a destruição minuciosa de sanatórios, hospitais, bairros residenciais, lares de idosos, escolas, creches, maternidades num regresso à guerra total que acreditávamos pertencer ao passado?
Cada tanque russo é hoje um carro alegórico do Absurdo e todas estas imagens representam um estupro de civilização. De toda a civilização. A letra no fim do alfabeto da decência.
Augusto Gil não era um poeta maior. Mas as pegadas que chorou no seu poema são, hoje, a glória da Ucrânia e são elas a razão porque temos a obrigação maior de interromper o torpor do cinismo que teima em nos devorar.