Para a APAV, "decisões como esta reforçam a necessidade de um maior investimento na formação dos magistrados sobre estas matérias, não tanto no que se refere ao enquadramento legal que baliza o julgamento da causa, mas na análise mais vasta da factualidade em apreciação".
Impõe-se, segundo um comunicado da associação de apoio à vítima, "a multiplicação de esforços que permitam dotar os julgadores de maior e melhor conhecimento multidisciplinar e, simultaneamente, mitigar alguns mitos e estereótipos sociais e culturais nefastos para uma boa decisão".
O Tribunal da Relação do Porto recusou, em 27 de junho, um pedido do Ministério Público para transformar em prisão efetiva a pena suspensa decida para os dois homens no tribunal de primeira instância de Vila Nova de Gaia.
Os desembargadores que assinaram o acórdão, incluindo o dirigente da Associação Sindical de Juízes Manuel Soares, argumentaram que "a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica" e num "ambiente de sedução mútua".
A APAV contrapõe que justificar a diminuição da culpa dos arguidos pela prática de atos sexuais sem consentimento da vítima com base no facto de ter sido "uma noite com muita bebida alcoólica" e num suposto ambiente de sedução "significa, sem meias palavras, atribuir alguma culpa à vítima pelo que sucedeu".
E isso, enfatiza,
"é inaceitável e bem demonstrativo aliás de visões de género estereotipadas e da consequente tolerância com que atos extraordinariamente violentos ainda são encarados no seio da nossa sociedade".
Ainda na perspetiva da APAV, num estado de direito democrático, "a sociedade deve acatar e respeitar toda e qualquer decisão proferida pelos tribunais", mas o poder judicial também "deve aceitar a liberdade de opinião, respeitar o direito à crítica e, até, participar no debate, contribuindo para um cabal entendimento das decisões por parte da comunidade".
Associação Sindical dos Juízes Portugueses defende acórdão
Após as primeiras reações críticas ao acórdão, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses veio sublinhar, em comunicado, que os tribunais "não têm agendas políticas ou sociais, nem decidem em função das expectativas ou para agradar a associações militantes de causas, sejam elas quais forem".
A associação representativa dos magistrados judiciais observou também que, no caso de Vila Nova de Gaia, "não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave".
E a ausência de consentimento?
A APAV concorda que os dois homens foram condenados por um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência e não por violação, mas sublinha que "a reiterada colocação da tónica nesta distinção pode transmitir uma ideia de diferença substancial ao nível da gravidade das condutas, ideia que não corresponde à realidade".
Os dois crimes, refere, "partilham um elemento essencial - a ausência de consentimento - e a moldura penal é aproximada no seu limite mínimo (três anos no caso da violação, dois anos no caso de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência) e igual no seu limite máximo (10 anos)".
O caso ocorreu em novembro de 2016 numa discoteca de Vila Nova de Gaia e a vítima, de 26 anos, chegou a estar inconsciente por excesso de consumo de álcool, mas os dois homens alegaram sempre que ela consentiu as relações sexuais.
Em 8 de fevereiro de 2018, o Tribunal de Vila Nova de Gaia condenou os dois arguidos a pena de prisão de quatro anos e meio, suspensa na sua execução, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
O Ministério Público recorreu, pedindo condenação a pena efetiva, mas os juízes do Tribunal da Relação do Porto mantiveram a condenação em primeira instância num acórdão de 27 de junho.
O acórdão motivou já um protesto público, numa praça do Porto, ao final da tarde de quarta-feira, estando agendados outros hoje e sexta-feira, em Coimbra e Lisboa, respetivamente.
Lusa