Rui Correia

Cronista SIC Notícias

País

O regresso do chumbo por faltas

É preciso chumbar por faltas. Não existe forma mais explícita de dizer isto. É preciso regressar a uma prática de elementar senso comum, pela qual faltar às aulas “porque sim” conduz a um “chumbo por faltas”, como se dizia antigamente. Trata-se do próprio prestígio do acto de estudar.

O regresso do chumbo por faltas
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Hoje em dia, quando um aluno falta excessivamente, elabora-se um Plano Individual de Trabalho. A ideia é que o jovem procure desta forma compensar, com trabalho adicional, as faltas que deu e recuperar os conteúdos que perdeu. Caso o aluno o não execute, a possibilidade de chumbar por faltas passa a ser da responsabilidade do conjunto dos professores da turma (Conselho de Turma). Existem, porém, vários problemas nesta solução.

Em primeiro lugar, raros são os alunos que ficam retidos, mesmo quando não cumprem o seu PIT.

Em segundo, cada escola aplica o PIT de forma diversa, o que gera uma inaceitável discriminação na equidade da sua aplicação; ou seja, vai depender da escola se o miúdo chumba ou não por faltas.

Em terceiro, ainda mais raros são os professores que acreditam que um PIT ajuda a recuperar ou a compensar o que quer que seja.

Em quarto, muitas são as escolas, quase todas, que exigem que um aluno que falta a várias disciplinas, tenha de recuperar ou compensar aprendizagens apenas a uma daquelas a que ultrapassou o número legal de faltas, o que não faz sentido rigorosamente nenhum. Isto significa que se assume que o PIT não tem nenhuma utilidade concreta para a recuperação de aprendizagens perdidas. Parece restar-lhe apenas a função ruminante de punir ou castigar um aluno por ter faltado. De que modo? Aprendendo. Ora se estudar é um castigo, ninguém devia ser obrigado a estudar.

O PIT serve, pois, para gerar a sensação - administrativa - de haver um plano para quem falta excessivamente. Nada disto tem qualquer valor. Foi uma ideia benigna que correu mal. Nada mais. Extermine-se.

Para que serve chumbar?

Sem alarido: reter alunos não é algo que traga qualquer vantagem; aos alunos, aos pais, aos professores e às escolas.

Em educação cada caso é um caso, mas a ciência está aí para ajudar a tomar decisões políticas que afetam todos os casos. Quase toda a melhor literatura pedagógica e científica sobre o assunto refere explicitamente que a retenção de alunos não só não traz qualquer benefício ao sistema, como, pelo contrário, escava mais fossos educacionais entre os miúdos, amplia desigualdades e atira muitos deles para longe do estudo e da escola que é onde devem estar o máximo de tempo possível.

Jackson (1975), Holmes e Matthews (1984), Jimerson (2001), Pagani (2001), Silberglitt (2006), Wu (2008), entre outros, escalpelizaram o tema de forma afiada e despreconceituada. Da sua leitura, fica bem patente a desconsideração com que todos estes investigadores olham para a retenção de um aluno como medida empírica ou pedagógica de recuperação de aprendizagens. Além disso, existem questões políticas que têm a maior premência nesta questão da retenção ou do “chumbo”.

Como pode uma escola interromper o ciclo de escolaridade de um jovem se a própria escola não dispõe dos meios necessários para apoiar esse mesmo jovem? Dito de outro modo: como pode o Estado dizer a uma aluna que vai ter de repetir um ano, se durante o ano que passou, esse mesmo Estado não teve recursos humanos e materiais para apoiar essa aluna, cujas dificuldades foram, ainda por cima, minuciosamente detalhadas pelos seus professores.

Como pode uma escola sem meios chumbar alguém?

São aos milhares os alunos diagnosticados com necessidades de apoio individualizado a Inglês, Matemática, Português, etc. E que não o tiveram. Se têm dúvidas, leia-se a burocracia: quantos apoios são propostos em atas de Conselhos de Turma que não são, depois, proporcionados aos alunos porque, muito mundanamente, não foi dado a essa escola o crédito horário suficiente para acomodar professores e apoios?

É como levar um carro a uma oficina, e o mecânico explicar que o veículo precisa de uma junta nova no motor e o dono decide que, se assim é, o melhor talvez seja ir ali dar “mais uma volta, mais uma viagem” com o carro, a ver se a coisa se resolve por si. Não existe qualquer sentido empírico ou sustentação científica que apoie a perspectiva pela qual a retenção contribua para uma superação de dificuldades anteriores.

Porém, ainda que todos estejamos mais ou menos disponíveis para consentir estas evidências, por serem tão pedagogicamente certificadas e empiricamente testemunhadas, há sempre quem vocifere uma formidável repercussão: “Se a miudagem descobre que não há “chumbos”, qual a vantagem de estudar, se no fim passa toda a gente?”.

Esta é a típica pergunta - mal formulada - de quem julga ter descoberto a roda pela segunda vez. Parece válida mas apenas porque, como é costume no ignorante malicioso, esconde as variáveis que não lhe interessa debater. Em primeiro lugar, pressupõe a ideia pela qual os cientistas não pensaram nisto. Em segundo, dá a entender que a ciência, essa parva, voltou a descobrir um problema para o qual não apresenta solução. Mais valia estar quieta. Todavia, é tudo mentira. Fake. Desde sempre se pensou neste problema e a ciência tem, desde há muito, as receitas para ultrapassá-lo. A política e o populismo é que não.

A escola locomotiva

Uma delas é esta coisa extraordinária de achar que o problema está na escola e que a escola devia saber resolvê-lo. Infelizmente não é assim: a escola é um segmento da realidade social. Ela não tem esse poder. Nem deve ter. A escola não é um universo separável da sua comunidade. Pelo contrário, cada escola é o que tem em seu redor. Ela é feita de pessoas que vivem numa comunidade composta pelos recursos materiais, sociais e políticos que a constituem.

Admitir que a ação de uma escola possa superar os desafios da sua comunidade é conferir-lhe um poder que, na sua essência, nem tem de aceitar. Esse não é o papel de uma escola. É verdade, que em muitas circunstâncias, ela assume essa incumbência. Mas sempre em desespero de causa; quando tudo o resto falha. São comovedores os casos em que tal sucede; em que uma escola e os seus professores revolucionam uma comunidade inteira e a erguem das cinzas. Mas trata-se de excepções que nem deviam confirmar a regra.

Todos nos lembramos do trauma que foi e continua a ser o encerramento das pequenas escolas de aldeia. São espinhos cravados no coração das sensibilidades locais. O encargo da saúde socio-económica de uma comunidade só muito colateralmente deve ser cometido às escolas.

Muito mal estamos nós quando a escola é a solitária locomotiva de uma comunidade. E muito menos deveria ela ser a grande promotora de cultura. E, no entanto, é. Se hoje quisermos ouvir alguém falar de uma Arendt, um Neanderthal, um Hawking ou uma Pankhurst numa cidade portuguesa do interior por volta das oito da noite, é bem provável que apenas numa escola com regime nocturno se esteja a falar desta gente.

Baldar-se ao estudo

Fique, pois, bem claro que não se advoga a retenção por faltas sem a consideração específica da ciência e do estudo de cada caso humano. Mas uma coisa é compreender as circunstâncias que levam um miúdo a faltar. Outra inteiramente diferente é dizer a um aluno que, quer ele falte ou não falte, o resultado será o mesmo.

A realidade, essa obstinada, demonstra que temos alunos em todos os graus de ensino que faltam sistematicamente às aulas sem “dar cavaco a ninguém”, “sem mas, nem meio mas”. Falamos apenas de faltas injustificáveis.

Quando estudamos as circunstâncias pessoais desta miudagem quase sempre percebemos que algo vai mal a montante e que os pais têm de se envolver na resolução do problema. Mas estas circunstâncias não podem comprometer o grau de zelo e diligência que deve exigir-se destes miúdos. Especialmente a estes miúdos. Não lhes exigir regras elementares é abandoná-los a si mesmos, que é, reconhecidamente, a última coisa que precisam. É lançá-los no poço da pobreza e da exclusão. A responsabilização pelo ato de aprender, de estar presente, é imperativo num qualquer processo de aprendizagem e de crescimento. O seu compromisso com a escola é uma obrigação primária de cidadania.

Quem perguntar a qualquer professor qual é o seu maior problema com os seus alunos é muito provável que ouça com frequência que o maior adversário é a indiferença com que eles encaram o ato de aprender.

Estudar é, para alguns rapazes e raparigas, uma absoluta ociosidade com nenhum valor facial. Desconhecem a sua importância; nunca a aprenderam. A escola e o estudo são falácias. Não é que detestem aprender. Detestam a disciplina de aprender. Ficam a dormir em casa. Enganam os pais, vindo para a escola para depois não assistirem a uma única aula.

Outras vezes faltam a umas aulas e vão a outras porque não apreciam este ou aquele professor, esta ou aquela disciplina. Faltam a tudo e faltam com tudo. Não fazem trabalhos, não apresentam aulas, faltam nos dias de provas formativas ou sumativas, porque não querem ser confrontados com maus desempenhos. E assim se vão afundando em si mesmos cada vez mais.

Dar férias a quem não trabalha?

Tornou-se uma premência elementar, aplicar a retenção a alunos que faltem ao dobro, triplo, quádruplo das aulas semanais de uma disciplina durante um período, um semestre ou um ano lectivo – decida-se como se quiser. Chumbar por faltas é, hoje, um imperativo central. É urgente um quadro legal para a inteligibilidade simples do sistema (e o sistema precisa de simplicidade como de pão para a boca). Faltar sem justificação não pode ser uma opção. Ninguém estrutura uma aprendizagem de um jovem sem a sua “presença”.

E compreendamo-nos ainda melhor: o ensino presencial não tem de exigir a presença física do aluno. Tem, isso sim, de reivindicar a “presença” do aluno, o seu compromisso de aprendizagem.

Nenhum professor precisa de ter um aluno numa sala, se ele cumpre integralmente o que foi preparado para si. Como pode marcar-se uma falta a um aluno que, por estar doente, ou em viagem noutro país, participa activamente numa aula por videoconferência, a distância? É isso que é a “presença”.

A escola pode e deve encontrar formatos versáteis, flexíveis, congruentes, profissionais, diversificados de garantir a presença e proporcionar a aprendizagem do aluno, com os recursos tecnológicos apropriados e a participação dos SPOs, o préstimo das CPCJs e demais estruturas sociais. Sem dúvida. Mas isto de fingir apenas que se tem um plano administrativo para enquadrar um injustificável absentismo é que não pode ser. Isso é uma trapaça e é um logro.

Exigir uma “presença” impõe que não se confunda miúdos que não podem ir às aulas com aqueles que se estão nas tintas para as aulas. Quem falta sem justificação deve ser retido, frequentar mentorias e escolas de Verão, (faz algum sentido proporcionar férias a quem não trabalha?) e tentar de novo no ano seguinte.

São demasiados os alunos cuja vida pessoal está feita em cacos e fazem das tripas coração para cumprir as exigências rudimentares do ato de aprender. E fazem-no bem. A escola devia espelhar este seu esforço e imitar estes miúdos.