Rui Correia

Cronista SIC Notícias

País

Uma minhoca e um sapo cego entram numa sala de aula

Opinião de Rui Correia, professor. Obrigar os nossos miúdos a estudar com os mesmos equipamentos que eles usam para jogar o minecraft é o mesmo que fazer uma reunião dos alcoólicos anónimos numa cervejaria.
Uma minhoca e um sapo cego entram numa sala de aula
Canva

Esta demolidora sentença do comediante Jim Gaffigan é uma boa ilustração do que a sociedade pensa acerca das modernices em que meio mundo educativo anda mergulhado.

Basta uma leitura apressada desta anedota - porque se trata de uma anedota - para concluir que realmente é uma loucura isto de pôr os alunos a massajar telemóveis, tablets e computadores com a intenção de aprender o que quer que seja. Daqui até à fundação de duas ou três aldeias tribais que se combatam pirronicamente vai um saltinho. Desde a demonização até à euforia parece valer tudo em educação, esse planeta das certezas absolutas.

Entretanto, os profissionais assistem com tédio a estas zaragatas. Na voragem voluptuosa de ter razão, os gladiadores mediáticos desprezam aquilo que mais os devia ocupar: a miudagem. Panem et circenses. É justamente isso que mais releva da frase assassina do Jim Gaffigan, esse pálido turista do mundano. É uma anedota. Não é uma tese. Tem a função de fazer rir. Nenhum outro propósito se compara com esse. Não representa o que o comediante defende. Não defende nada. Não é mais nada senão uma formatura de palavras escolhidas com artístico rigor que resultam num ângulo falível, injusto e amputado, mas hilariante. Um punchline. Toda a anedota vive do soundbyte. Por ser, na sua essência, uma anedota. Por não ter pretensão a mais nada. Uma anedota é uma inépcia sincera. Não tem pretensões a ser percebida como uma tese. É por isso que é sempre ridículo combater comediantes.

Os unicórnios e o Pai Natal

O que seria se todos soubessem ter este desprendimento? Seja sobre o digital na educação ou noutro domínio qualquer, em educação toda a gente confunde um ângulo com um segmento de reta.

Encerrados em fortalezas retóricas, os especialistas em coisa alguma entregam-se à irresistível volúpia de misturar alhos com bugalhos sem que haja a menor preocupação em distinguir trigos e joios e em entregar a César o que é de César. Que nisto de falar sobre educação é «a minha opinião contra a tua».

Tudo vale até que tudo sirva para nada. Preside uma visão pela qual o acto de fazer aprender não passa de uma horita por semana em frente de miúdos a dizer assim umas coisas e mais não sei o quê. É justamente esta clamorosa distância entre a realidade e a palavra que autoriza que todos tenham opinião sobre tudo, em matéria educativa. Acreditam na sua própria anedota.

Veja-se o que aconteceu com o célebre episódio do sapo cego e da minhoca numa prova de educação artística. O clamor público, quase unânime, que se gerou, pretendendo com o caso demonstrar-se a insanidade do atual estado da educação.

Uns por uma razão e outros por outra, quase todos ignoraram, por torpeza ou preguiça, a própria prova de aferição e os moldes concretos em que o exercício foi apresentado. 90% dos mais veementes opinadores públicos não a leu, não a consultou, fingiu não a perceber, e correu a vilipendiar. Tratando-se de uma prova da área da expressão artística e física, seria de prever alguma latitude. A mesma que todos achamos recomendável e adorável quando compramos unicórnios de peluche ou mentimos anualmente sobre a descida do Pai Natal pela chaminé ou lhes recordamos a sanguinolenta ressurreição do capuchinho vermelho. Nada disso. Escolheu-se o escândalo e o rasgar das vestes. Quando se pensa na energia que a opinião pública gasta a escriturar e escrutinar as decisões didácticas de um professor, ficamos com a sensação que a escola traumatizou indelevelmente a maioria dos seus antigos alunos. As ruas estão pejadas de vítimas.

Um tempo para estar calado

Recentemente uma professora da Florida - where else? - foi exposta e ostracizada por ter passado na sua turma um filme da Disney que incluía uma personagem abertamente gay. Apanhada no fogo cruzado de um putativo candidato a candidato republicano e um ideário ultraconservador, a professora decidiu não se calar, denunciou tudo no tik tok e promete levar o caso a tribunal para defender a liberdade de ensinar. Bandos de tribos vândalas apressam-se a tomar partido.

Não é extraordinário que os mais ruidosos defensores da liberdade de expressão sejam sempre aqueles que mais a desejam limitar à expressão das suas próprias ideias e nada mais. É, de resto, um clássico. Claro que tudo se esclarecia caso os lançadores de facas tivessem estado dentro daquela sala de aula. Sempre o mesmo síndrome do «You had to be there....» que é outra forma de dizer: fala menos e estuda mais. Deixou mesmo de haver um tempo para estar, biblicamente, calado.

Aliás, o processo é sempre o mesmo: ignorar variáveis inoportunas, omitir informações cruciais e selecionar apenas as que são convenientes ao argumentário. Pensemos, para além do ruído e da espuma.

O que há de escandaloso em imitar uma minhoca e um sapo cego, um unicórnio ou um capuchinho vermelho numa prova de expressão artística?

O maravilhoso encenador Andrzej Kowalski exigia aos seus iniciantes a atores que atravessassem todo o palco como se estivesse totalmente inundado com gelatina. E depois era ver uns dez ou doze mamíferos a entranhar-se, fingidamente, por umas toneladas de gosma colorida e imaginária durante uns risíveis e amadores minutos. Se a cena era ridícula? Concerteza. Tecnicamente, então, deve ter sido um tormento para o experiente Kowalski.

Um dia declamou um poema de um autor polaco de tal forma sofrida e convincente que pôs toda a gente caladinha e soturna perante a presença pungente de tanta dor. Quando terminou, confessou que tinha estado apenas a contar de 1 até 20 na sua língua natal. Ridículo? Evidentemente. Que importa isso? Debateu-se a seguir a ilusão como forma de participação afetiva do espectador.

Sapos que veem bem ao longe?

Aquilo que resulta destes «ridículos» todos a que chamamos expressão artística é a diligência da imaginação e a força que dela emana e os formidáveis segredos que ela invoca. Se nos contassem que, num exame sumativo, uma experiência científica recomendava a utilização de reagentes errados para um exercício laboratorial, um erro de formulação numa equação matemática, uma referência apócrifa num texto histórico, cá estaríamos para lamentar a imprecisão e a falta de profissionalismo.

Agora, um sapo cego e uma minhoca numa prova de expressão artística do segundo ano? Qual é o batráquio que acha que não existe uma idade certa para imitar uma minhoca ou um sapo cego? Não há utilidade nenhuma em saber o que é e como se move uma minhoca? Se o sapo fosse manco, míope ou daltónico seria melhor? O sapo não devia ser deficiente? Qual é o assunto que estamos, sequer, a discutir?

Não é justamente nestas idades que cumpre fazer explodir o impulso da criação e da invenção, do absurdo, e até do ridículo? E depois tentar nunca mais parar de o fazer? Falem com qualquer artista sobre o tema do ridículo e ele estará anos a dizer coisas interessantes sem tempo para respirar. Ridículo é quando nos dispomos a dar palavra e palco a tanto girino cego e nos prendemos com tanta minhoquice. Chega de engolir tanto sapo.