Os funcionários públicos vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, na maior parte dos casos, só recebem a indemnização a que têm direito quando chegam à reforma. Continuam a trabalhar, apesar das lesões permanentes, e, normalmente, têm de esperar anos até receber uma compensação financeira pelos danos físicos que sofreram. Esperam anos e, quando recebem, esse dinheiro volta a ser retirado pela Caixa Geral de Aposentações. Não vale a pena reclamar. É o que está na lei.
Receber pouco ou mesmo nada por danos corporais permanentes em serviço do Estado
Atualmente, a lei diz que os trabalhadores da administração pública (central, regional ou local), com mais de 30% de incapacidade permanente causada por acidente de trabalho ou doença profissional, têm direito a receber compensação financeira na altura do acidente, quando é apurado o grau de desvalorização profissional. Esse cálculo é feito tendo em conta as capacidades físicas e mentais da vítima, o tipo de tarefa desempenhada e a idade ou envelhecimento precoce. Uma decisão das Juntas Médicas, com base na Tabela Nacional de Incapacidades.
Uma tabela considerada desadequada, visto que há enfermidades em falta na classificação de doenças profissionais e há partes do corpo claramente subvalorizadas. Há correlações de doenças e lesões que vão somando na percentagem de desvalorização profissional e até bonificação quando a vítima tem mais de 50 anos mas a esmagadora maioria dos casos fica classificada abaixo dos 30% de incapacidade: problemas ósseos, lesões musculares ou nos tendões, por exemplo. E é aqui que milhares de funcionários públicos ficam a perder porque o valor da indemnização que é fixado na altura do dano corporal só é pago quando a pessoa atinge a idade da aposentação.
“Toma lá, dá cá!” É o que manda a lei na Caixa Geral de Aposentações
Depois da queda ao descer do autocarro, Maria Rocha viu finalmente reconhecido o acidente em serviço, já que regressava a casa depois do trabalho, e uma incapacidade permanente de 22%. Dois anos depois, chegou a carta da Caixa Geral de Aposentações com o montante da “reparação total do acidente”, no valor de 25.349,62 euros. A mesma carta explica que “o abono fixado fica, porém, suspenso” porque não é acumulável com “a capacidade geral de ganho do trabalhador”. Como assistente técnica administrativa, pode continuar a trabalhar e a receber o salário por inteiro, apesar de uma lesão permanente num pé. Aos 57 anos, Maria Rocha ficou a saber que tinha de esperar pela aposentação para receber o dinheiro da indemnização. E depois, esse dinheiro vai ser-lhe retirado. É o que acontece também a outros.
Teresa Mendes, com uma incapacidade de 10%, reformou-se a 2 de maio de 2020. Meses antes, quando ainda exercia atividade numa conservatória da Grande Lisboa, fez uma lesão num pé durante o horário de trabalho. Mas o processo para determinação do grau de incapacidade só chegou ao fim quando já estava reformada. Recebeu a indemnização, a título de reparação pelo acidente de trabalho e quando recebeu a pensão de reforma, reparou – “qual não foi o meu espanto!”, exclama – que faltavam cerca de 30 euros em relação aos meses anteriores. Porquê? Teresa Mendes pediu explicações à Caixa Geral de Aposentações e ficou a saber que iria ser assim, todos os meses, até ser atingido o montante total da indemnização que lhe tinha sido paga: “Eu não queria acreditar e respondi: então, não me dão nada, ou melhor, dão com uma mão e tiram com outra”, disse à SIC. E é verdade. Mas nem sempre foi assim. Veja-se o exemplo de José Carlos Avó.
A herança de Passos Coelho na segurança no trabalho
Desenhador durante 37 anos na Câmara de Almada, em visitas a obras, José Carlos Avó sofreu dois acidentes de trabalho: em 2009 e em 2018. Em termos de resposta do empregador-Estado quanto à compensação pelos danos causados, há uma grande diferença que surge em 2014, estava Pedro Passos Coelho no Governo. A alteração do regime jurídico dos acidentes em serviço e doenças profissionais na Administração Pública diz que “as prestações por incapacidade permanente não são cumuláveis com a pensão de aposentação”.
Veja-se o caso concreto: da queda numa obra em 2009, José Carlos Avó recebeu a indemnização no ano seguinte, cerca de 6 mil euros; do acidente de 2018, ao receber a indemnização de 12.624,58 euros, já depois de aposentado, recebeu também o “recado” da Caixa Geral de Aposentações: daí para a frente, no valor da pensão de aposentação, “será reduzido mensalmente o valor de 72,16 euros correspondente à remição por acidente em serviço agora fixada”. Toma lá, dá cá. Para que não restem dúvidas quanto à generosidade do maior empregador do país: o Estado.
“Os senhores do Palácio Ratton” e a “exposição imprudente ao perigo profissional”
As regras aprovadas pelo Governo de Passos Coelho, vivia o país o aperto da “austeridade”, foram tão constestadas na altura, sobretudo pelos sindicatos da Função Pública, que chegaram ao Tribunal Constitucional. A decisão, em 2017, dividiu os juízes mas, no acórdão, ficou escrito que uma indemnização a uma pessoa com lesões permanentes iria “privilegiar os trabalhadores atingidos pelo infortúnio” e “abrir caminho a uma exposição imprudente ao perigo profissional”.
O texto, com votos de vencido por parte de duas juízas, foi considerado “deplorável” pelo STAL, o Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local. Num comunicado, o sindicato parodiou a ideia de que os “trabalhadores podiam cortar um dedo ou contagiarem-se propositadamente com uma batéria” para, com o dinheiro da indemnização, “ficarem numa posição privilegiada face aos colegas que não ousavam cometer tais proezas!”. Já Garcia Pereira, advogado especialista em Direito do Trabalho, usa o adjectivo “ultrajante” para classificar a decisão daqueles a que se refere como os “senhores do Palácio Ratton”, numa alusão aos juízes conselheiros e ao emblemático edifício do Tribunal Constitucional.
Governo atual mudou a lei mas não resolveu o problema
Esta legislação, em vigor desde 2014, voltou ao Parlamento sob proposta do PS, já com o Governo de António Costa, mas não foi reposta a situação anterior, em que todos trabalhadores da Função Pública recebiam as indemnizações na altura do acidente de trabalho ou declaração da doença profissional em vez de ter de esperar pela altura da reforma.
Em 2021, a Assembleia da República aprovou uma lei que já permite de novo a acumulação de indemnização por danos corporais com as pensões de reforma (velhice, invalidez ou sobrevivência) mas não se aplica a todos os funcionários públicos aplica-se apenas aos que ficam com uma incapacidade acima de 30%, deixando de fora, como vimos, a esmagadora maioria dos casos de danos corporais permanentes decorrentes de acidentes de trabalho ou de doença profissional. Essa lei é de 2021, mas só produz efeitos a partir do Orçamento do Estado de 2022, que ainda não está aprovado, e precisaria de ter sido regulamentada no prazo de seis meses a seguir à publicação, o que – passado mais de um ano – ainda não aconteceu.
Ao contrário do que parecia, a situação ainda não foi revertida. Em rigor, há milhares de funcionários públicos que, na prática, não recebem qualquer compensação em caso de acidente de trabalho.
220 mil acidentes de trabalho por ano em Portugal
Em Portugal, no ano passado, de acordo com a Associação Portuguesa de Seguros, ocorreram cerca de 220 mil acidentes de trabalho. O tema foi tratado pela SIC, no passado dia 4 de maio, no programa Essencial, de Conceição Lino, numa reportagem que demonstrou a fragilidade do apoio às vítimas e às famílias das vítimas, mesmo com seguros de trabalho obrigatórios, que pode ver aqui.
Veja o programa Essencial sobre acidentes de trabalho