Recebi a agenda de Ricardo Salgado num período profissionalmente muito complexo. O mais difícil foi resistir à tentação de abrir e desbravar o documento e as toneladas de informação que esse confessionário do velho banqueiro trazia a reboque. Se o tivesse feito no dia em que todo aquele aparato me chegou às mãos, diluir-me-ia num atoleiro e, pior, desfocar-me-ia da matéria que, por esses dias, me andava a consumir – as negociatas do mestre de obras Luís Filipe Vieira, amparadas, exatamente, pelo dono da agenda.
Defeito de fabrico: nunca fui capaz de me dedicar a fundo a mais do que uma matéria ao mesmo tempo. Vieira e Salgado até podiam ser amigos, Vieira até poderia estar na agenda do banqueiro (e está, uma dezena de vezes), mas o protagonismo do ex-presidente do Sport Lisboa e Benfica ofuscar-se-ia se a agenda de Ricardo Salgado tivesse penetrado a minha pesada rotina. E já andávamos há uns meses a reconstituir o inglório passado do mais famoso “testa de ferro” de Ricardo Salgado.
Três certezas
Tinha três certezas que me aconselharam calma: a reportagem da agenda não me iria fugir das mãos; para trabalhar os 2268 dias de Ricardo Salgado e os seus 3005 ficheiros, alguns com mais de 1000 páginas, precisava de muito mais do que eu e, terceira razão, precisava que a direção de informação da SIC acreditasse na ideia. Passo a passo, as três certezas foram ganhando músculo até tomarem a sua forma definitiva.
De facto, a reportagem da agenda não me fugiu das mãos. A prenda que me tinham dado, da forma como veio “embrulhada”, era exemplar único e não tinha associada nenhuma contrapartida. A relação de confiança que, ao longo dos muitos anos de jornalismo, fui construindo com algumas fontes é profusamente regada com novas doses de confiança, a envolverem ambos os lados.
Mesmo que nada mais tivesse para fazer no dia em que me entregaram a agenda do banqueiro e, consequência desse vazio, me entregasse à torrente de informação armazenada, iria, certamente, soçobrar. Eram precisos mais jornalistas que, como eu, se pudessem entregar à missão a tempo inteiro. Um deles estava escolhido. Chama-se Filipe Teles, tem pouco mais de 30 anos e alia o gosto e o faro pela investigação a competências tecnológicas essenciais para lidarmos com milhões de palavras dispersas em 3005 documentos e 2268 dias de agenda.
A Direção de Informação da SIC percebeu, sem grande esforço da minha parte, a necessidade de termos o Filipe Teles do nosso lado e decidiu contratá-lo para este trabalho. Estava consumada a terceira certeza: a Direção de Informação da SIC acreditou neste trabalho e estava disposta a investir nele.
A complexidade da investigação
Começámos em meados de janeiro de 2023. Tirando as escalas de fim de semana e de férias, algumas folgas atrasadas que aproveitei para gozar e quatro das cinco semanas de férias, que também gozei, entre janeiro e novembro só me entreguei à agenda de Ricardo Salgado.
Dois jornalistas a tempo inteiro tantos meses envolvidos num único trabalho é um luxo a que, infelizmente, o jornalismo português não se pode dar. A SIC, felizmente, deu.
O problema é que a agenda e seus apêndices era matéria de tal ordem complexa que dois jornalistas, a tempo inteiro, jamais conseguiriam filtrar, contextualizar e transformar em matéria visual. Por isso, desde o início que se juntou ao grupo o Micael Pereira, camarada do Expresso, um dos melhores jornalistas de investigação portugueses. O Micael consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo, dando a todos o mesmo grau de atenção. A experiência de trabalho em equipa do Micael, lançando dúvidas, sugerindo formas de organização, apontando caminhos para chegarmos mais rapidamente ao que, ao primeiro olhar, se revela inacessível, acrescentando toneladas de informação à nossa torrente... tudo isso deu consistência e serenidade à equipa.
O quarto elemento, o Paulo Barriga, o meticuloso, criativo e excelente jornalista Paulo Barriga, andava distraído com o seu Alentejo, onde vive e ter-lhe-á sabido bem subir 200 quilómetros para se juntar à equipa. O Paulo tomou conta do dossier Líbia, uma matéria absolutamente inexplorada no tratamento jornalístico do caso BES.
À equipa juntou-se o João Venda, repórter de imagem que cresce no terreno todos os dias. O interesse, o cuidado, a sensibilidade, a qualidade do trabalho do João ... a paciência, do João ... são características fundamentais para o sucesso de uma reportagem visual. O Andrés Gutierrez, editor de imagem com quem tenho o privilégio de trabalhar, continuadamente, há quatro anos, resolveu, na edição, os dramas do oculto que a investigação jornalística em plataformas visuais tem de desvendar. Fazermos três grandes reportagens de investigação e um epílogo dando vida a documentos, imagens de arquivo (dezenas de horas que o Tiago Gomes Pedro conseguiu encontrar), exigem do editor de imagem muito mais do que as muitas doses de paciência do Andrés. Criatividade e eficácia, eis as palavras-chave que sintetizam o trabalho do Andrés.
O bom senso e a atenção aos detalhes da Diana Matias, produtora editorial da Grande Reportagem, protegem-me, protegem-nos.
O Fernando Ferreira, infografista, foi uma agradável surpresa. Engrandeceu, com sobriedade e elegância, o design visual das reportagens.
E falta o nono elemento da equipa. O chefe. Jorge Araújo. Coordenou, editou, aconselhou, motivou e amparou. Obrigado, Jorge.
Estivemos, todos juntos, dez meses nisto. Quase um ano. Em 35 anos de carreira nunca fiz nada com esta dimensão. Foi um trabalho que exigiu de nós muito mais do que trabalho árduo. Foi um sofrimento desmesurado e um privilégio...
E o pior vem agora, quando, depois da emissão, nos confrontarmos com a ressaca do dia seguinte. Até voltarmos a perceber que a vida é, felizmente, muito mais do que trabalho. Mesmo que esse trabalho seja a agenda, de Ricardo Salgado.