Saúde e Bem-estar

O que há em comum entre cancros por diagnosticar e o lixo pandémico

A Covid-19 absorveu a atenção dos decisores, o trabalho dos profissionais e amedrontou as pessoas.

O que há em comum entre cancros por diagnosticar e o lixo pandémico

No passado Dia Mundial do Cancro, a comunicação social portuguesa deu destaque ao impacto da Covid-19 nas doenças oncológicas. Dias antes, tinha sido divulgado um novo relatório internacional sobre o aumento em larga escala da poluição associada à gestão e ao controlo da pandemia. Há um denominador comum entre estes dois acontecimentos: estávamos certos quando definimos a Covid-19 não enquanto pandemia, mas enquanto sindemia.

Em relação ao cancro em Portugal, quase dois anos de disrupções nos serviços de saúde e de medo do contágio resultaram em menos consultas, exames de diagnóstico e rastreios. As implicações são fáceis de perceber: o aumento expectável de tratamentos mais agressivos e da mortalidade associada às doenças oncológicas. Em causa não está a fantástica capacidade dos profissionais de saúde em recuperarem para níveis pré-pandemia diagnósticos precoces, número de cirurgias e tempos de espera. Sabe-se que o cenário não é animador em Portugal nem na generalidade dos países, porque a Covid-19 absorveu a atenção dos decisores, o trabalho dos profissionais e amedrontou as pessoas.

Em relação ao lixo pandémico, a OMS alertou sobre as consequências para o ambiente e a saúde humana de 144.000 toneladas de resíduos sólidos associados às vacinas, 87.000 toneladas de equipamento de proteção individual (máscaras, viseiras, luvas), e 2.600 toneladas de resíduos sólidos a que acrescem 731.000 litros de resíduos químicos associados aos testes.

Estes dois exemplos traduzem a natureza sindémica da Covid-19. Sindemia significa a relação sinérgica entre epidemias, pandemias e endemias e entre doenças e condições epidemiológicas e sociais pré-existentes. Significa o quanto certas doenças agravam a saúde e o bem-estar das populações muito além da existência dos vírus ou das bactérias que as causam.

É isto que estamos a assistir com a Covid-19 à medida que as vacinas vão repondo a normalidade perdida. Passada a gestão aguda deste vírus virão várias vagas de problemas societais que ligam a economia, a política, o ensino e aprendizagens, o ambiente e outras doenças…

Aqueles que negam a pandemia ou que acham que as respostas adotadas foram exageradas encontram folego no agravamento dos cancros e da poluição para fazer valer a sua razão. Fez-se demais e sem lógica aparente para lidar com uma doença que haveria de afetar quem já estaria condenado por gripes e pneumonias.

Essa ideia merece duas críticas. A primeira é a constatação de que a falta de resposta à Covid-19 fez aumentar a mortalidade direta e indireta, inclusive entre as crianças, e não evitou implicações socioeconómicas decorrentes do aumento da morbilidade. A segunda é que até prova em contrário a solidariedade inter-geracional não deixou de estar consagrada em princípios constitucionais.

O problema é a dificuldade de perceber que até à vacinação maciça da população, a proteção dos grupos de risco implicava fazer o que foi feito. A não ser que a solução fosse engaiolar os frágeis para não prejudicar os sãos, ou que assumiríamos repentinamente uma recomposição familiar que alterasse a proximidade de núcleos alargados onde filhos contactam com pais, netos com avós e sobrinhos com tios.

Sim, não há uma solução rápida nem simples quando uma doença tem uma natureza sindémica. Sim, há qualquer de inevitabilidade e de falta de capacidade humana nisto. Porventura esta postura humilde e consciente dos limites da ciência, da política e da ação humana devem estar na base da prevenção de novas sindemias. Porventura foi isto que devíamos ter aprendido com as sindemias da SIDA ou do cancro.

Dissemos vezes sem conta que o tempo da Covid-19 não coincidia com o tempo da política. Pois bem, estes dois tempos estão finalmente em sincronia: o aparente virar de página na gestão da doença e um novo ciclo político marcado pela estabilidade. São precisas em doses iguais o realismo para entender a complexidade e a persistência dos problemas que temos pela frente e a responsabilização de quem compete decidir.