Os termos em inglês traduzem-se facilmente: binge-watching é o mesmo que consumir compulsivamente determinado conteúdo - normalmente séries ou outros vídeos - e o scroll infinito é uma característica de sites e aplicações (existe no Instagram, no Facebook e no Tik Tok, por exemplo) que permite que o utilizador consiga fazer ‘rolar’ pelo seu ecrã conteúdos (quase) infinitamente, sem que seja preciso, por exemplo, mudar de página ou carregar em qualquer botão. Mas quando é que um hábito considerado normal para a sociedade se torna um vício? E o que é que isso diz da nossa saúde mental?
A resposta à primeira questão é simples, mas dificilmente a pessoa que apresenta este tipo de adição será capaz de reconhecer que dela sofre.
“Há um problema de adicção quando a pessoa deixa de cuidar de si, com prejuízo para as suas atividades, quer sejam pessoais, sociais ou profissionais. Fica vidrada naquele conteúdo que está a consumir de forma compulsiva. É um sinal claríssimo de alerta”, resume a psicóloga Cláudia Gaião Frade.
Só que, graças “ao fenómeno de negação, que está muito associado às adicções”, é frequente ser um familiar ou alguém próximo a notar primeiro essas alterações de comportamento. Ainda assim, a luta contra qualquer dependência começa sempre por “admitir que se tem um problema”.
“Como são situações que a sociedade considera normais, isso dificulta a procura de ajuda. Nota-se muito, por exemplo, que só o fazem quando surge outro problema associado. Nestes casos é muito frequente o aparecimento do binge-eating, que se traduz em comer compulsivamente, ou uma dependência do álcool”, explica a especialista no tratamento de problemas do foro adictivo.
Uma das bases deste tipo de adicções “é a solidão”, e as redes sociais servem para acompanhar e para mostrar “as vidas que, se calhar, nem têm, mas gostariam de ter”, de forma a “sentirem-se menos sozinhos”.
“E quanto mais uma pessoa é exposta a isso, mais vai vivendo dentro daquela rede social, desenvolvendo uma frustração, um vazio e uma dependência”, acrescenta Cláudia Gaião Frade.
A vida em direto deixa outras suspensas
Uma das funcionalidades das redes sociais que mais tem ganhado espaço e notoriedade é a da “live”, que nada mais é do que iniciar uma transmissão de vídeo em direto que permite, na maioria das redes sociais, interagir com quem está a assistir, de alguma forma.
“Se a pessoa deixa de fazer as suas tarefas normais, rotineiras, se começa a organizar a vida em função de assistir àquela live, há um problema. Assim como há muitos alimentos processados que têm doses de açúcar e outros aditivos para criarem dependência, também há conteúdos na internet criados para esse fim”, alerta a psicóloga.
Um problema que não escolhe idades
“A dependência de videojogos ou de redes sociais funciona muito na mesma lógica. As pessoas desenvolvem comportamentos de risco, que mais tarde podem tornar-se adicções, muito relacionados com um sentimento de mal-estar interno e usa esses mecanismos para fugir disso”, afirma a especialista.
O perfil dos doentes “é muito generalizado” e surgem situações em todas as faixas etárias, sendo aliás “uma problemática muito presente na idade adulta”.
“No caso dos mais jovens, costumam ser os pais a perceber que há um problema e a pedir ajuda, mas depois trazem os filhos contrariados à consulta, o que não é positivo. E os próprios filhos acabam, muitas vezes, por confrontar os pais: ‘tu também estás sempre agarrado ao telemóvel, porque é que para mim é um problema e para ti não?’”, partilha.
Há também “muitos casos de pessoas mais velhas, que vivem sozinhas, muitas mulheres burladas” porque alguém, no mundo online, percebe as suas fragilidades.
“Acompanhámos o internamento de uma mulher com uma depressão grave que, mais tarde, se veio a perceber que por trás havia uma dependência muito grande das redes sociais. Começou a ser burlada, em dezenas de milhares de euros, por homens e depois passava o dia inteiro a conversar com eles para tentar reaver o dinheiro ou a ser novamente enganada”, conta Cláudia Gaião Frade, sendo que neste caso, mais uma vez, “foi a família a perceber que algo se passava de errado”.
O primeiro passo é admitir a dependência
O tratamento destas, de alguma forma, novas dependências partilha o primeiro passo com as restantes: “A pessoa tem de admitir que tem um problema, aceitar que ele existe pode demorar muito tempo”.
“A partir daí, pode adotar estratégias de mudança, introduzir o exercício físico na rotina, cuidar de si, escolher um passatempo que envolva contacto social, encontrar-se realmente com os amigos, não apenas falar com eles através das redes sociais”, enumera a psicóloga, sendo certo que “ninguém chega à consulta com a consciência real do problema que tem”.