A grande urgência? Recuperar tempo perdido

Governo diz que está previsto para o próximo ano um investimento de €39,7 milhões em oncologia
José Fernandes
Quando falta menos de um mês para Portugal assumir a presidência do Conselho da União Europeia, que ocorrerá a 1 de janeiro, o Tenho Cancro. E Depois? juntou o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, e vários especialistas na área do cancro para fazer o balanço de um ano atípico e traçar objetivos para 2021. Será um período em que o país terá um papel central e responsabilidade acrescida no combate ao cancro, visto que esta é uma das prioridades traçadas pela Comissão Europeia. De recordar que estão destinados €5,1 mil milhões para fortalecer os sistemas de saúde dos Estados-membros da União Europeia, sendo que uma parte significativa desta quantia será para a luta contra as doenças oncológicas. Não obstante, o legado que a pandemia deixou ao país materializou-se em consequências negativas — algumas de resolução complexa —, que representam barreiras à implementação eficaz de medidas europeias.
Atrasos em rastreios, falta de referenciação por parte dos cuidados de saúde primários e difícil acesso a exames complementares de diagnóstico espelham as dificuldades prementes da oncologia nacional. “Diria que temos agora um grande desafio pela frente, um desafio de recuperação”, diz António Lacerda Sales.
Rastreios em atraso
De março a maio, a maioria dos rastreios teve que ser suspensa e, mesmo com a retoma, a segunda vaga de covid-19 fez com que o ritmo de recuperação voltasse a abrandar. “Quando já estávamos a recuperar — posso dizer que em outubro estávamos praticamente ao nível de recuperação do mês de fevereiro —, surgiu a segunda vaga, e todos sabemos o que aconteceu”, lembra Lacerda Sales. Os três rastreios existentes em Portugal — mama, colo do útero e colorretal — retomaram a velocidades distintas. No caso da mama, estima-se que cerca de 240 diagnósticos tenham ficado por fazer, segundo a Liga Portuguesa contra o Cancro (LPCC). Mesmo com a retoma, a taxa de participação no rastreio baixou e encontra-se agora entre os 55% e os 65%, dependendo das regiões, sendo que antes da pandemia rondava os 70%. “Apesar de todos os esforços que fazemos através de todos os procedimentos de segurança e higienização, as pessoas continuam com receio”, esclarece Vítor Rodrigues, presidente da LPCC.
Relativamente aos rastreios do cancro do colo do útero e do cancro colorretal, houve uma ligeira retoma, mas “muito incipiente”, diz Vítor Rodrigues. A explicação prende-se com o facto de, no caso do cancro da mama, a parte operacional do rastreio funcionar fora dos centros de saúde, enquanto os outros dois rastreios se realizam dentro das instituições. “Os rastreios mais dependentes da ação dos cuidados de saúde primários foram atingidos de uma forma devastadora”, refere José Dinis, coordenador do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas. No entanto, dada a forma como está organizado o sistema de saúde, enquanto os cuidados primários estiverem focados no combate à covid-19 esta será uma questão de difícil resolução.
Centros de saúde parados
Os cuidados de saúde primários são a principal porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, para além da responsabilidade relacionada com os rastreios, têm outras maneiras de referenciar. Os médicos de medicina geral e familiar prescrevem exames e análises e reencaminham os doentes para as consultas de especialidade. Estando focados apenas no combate à pandemia, um doente que apresente os primeiros sintomas pode neste momento ter de esperar meses até ter a sua consulta. “Há pessoas que vão duas ou três vezes a um centro de saúde e não passam do segurança. A maior necessidade, agora, é abrir estes sítios à população”, defende Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal. Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, partilha do mesmo anseio. “Para além dos casos de covid, temos dois milhões de pessoas com outras doenças. Esses dois milhões, que estão à nossa espera e cujos casos nós não podemos adiar muito, são uma enorme preocupação.” António Lacerda Sales admite que é necessário ir libertando os médicos de medicina geral e familiar para que estes se possam dedicar à sua atividade assistencial, embora defenda que tem de ser feito com “muita cautela”, admitindo que o desbloquear desta ação “depende da evolução da pandemia”.
Rui Nogueira põe também a tónica na necessidade de desburocratizar e agilizar os processos dos cuidados de saúde primários, seguindo bons exemplos já implementados, como a emissão de receitas eletrónicas.
Tratar cancro avançado é mais caro
É estimado que cerca de 40% dos diagnósticos tenham ficado por fazer durante os últimos meses. “Não só vai acontecer o problema de os doentes aparecerem com cancro em estados mais avançados, como o seu número também vai ser superior”, alerta Rui Henrique, presidente do IPO do Porto.
A falta de referenciação e de diagnóstico precoce faz com que os doentes cheguem às urgências dos hospitais e às consultas de especialidade com doença oncológica em estado muito mais avançado do que seria esperado caso os serviços estivessem a funcionar de forma adequada. Para além do impacto óbvio que esta questão pode vir a ter na vida e na sobrevivência do doente, o impacto económico para o país é, também ele, brutal. Basta olhar para os números. Curar um cancro em estado avançado é cerca de 10 vezes mais caro do que tratá-lo numa fase precoce.
“Como é que vamos absorver todos aqueles que não foram fazer os rastreios e os que ainda vão fazer, e como é que vamos receber e tratar todos os doentes que nos chegam, alguns com cancro mais avançado, em muito maior número e em menor espaço de tempo?”, pergunta Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama do Centro Clínico da Fundação Champalimaud. Resolver esta questão impõe um enorme consumo de recursos humanos e financeiros. “Nós não podemos parar. Se as pessoas já tiveram um atraso no diagnóstico, não podem ter um atraso no tratamento. Se assim não for, corremos sério risco de aumentar muito a mortalidade”, sublinha a especialista.
Prioridades para 2021
Maior coordenação com a Europa
Alinhar metas, tendo em conta as diretrizes do Plano Europeu de Combate ao Cancro, cujo objetivo principal é o de mitigar as desigualdades no acesso
Retomar e expandir rastreios
Só a implementação adequada do rastreio do cancro colorretal pode salvar entre 700 a 800 vidas por ano
Capacitação dos cuidados primários
Funcionamento normal dos centros de saúde é fundamental para o diagnóstico precoce
Digitalização da saúde
Agilizar as dinâmicas médicas mediante novas plataformas que permitam prestar melhores cuidados de saúde
Recolha e tratamento de dados
Investir em mecanismos que permitam ter bases de dados fiáveis. De recordar que o Registo Oncológico Nacional (RON) deveria ter sido divulgado em março
Monitorização
Implementar no SNS um conjunto de indicadores que providenciem, em tempo real, informações sobre a mortalidade, a incidência ou os tempos de espera de cada doença e torná-los públicos
Literacia em saúde
Aumentar o conhecimento sobre saúde junto da população, visto que 40% dos casos de cancro são evitáveis
Colaboração interinstitucional
A pandemia enfatizou esta forma de trabalho, com vários exemplos bem sucedidos, como é o caso da colaboração entre o IPO de Coimbra e o Hospital da Figueira da Foz
Ensaios clínicos
Organizar processos, uma vez que Portugal continua na cauda da Europa neste campo
Doentes oncológicos vacinados na segunda fase
De acordo com o Plano de Vacinação contra a covid-19, os doentes com cancro serão vacinados na segunda fase. “Estes doentes entram na segunda fase, incluídos nas pessoas entre os 50 e os 64 anos que apresentam várias patologias, como neoplasias malignas, à semelhança das pessoas com mais de 65 anos”, refere Lacerda Sales. Todos os tipos de cancro serão contemplados nesta etapa de vacinação, mas depende do médico assistente decidir se o doente deve ou não tomar a vacina. Porém, há quem considere que os doentes oncológicos devem ser vacinados logo na primeira fase, ao qual o Governo responde que o plano é “flexível”, podendo ser alterado a qualquer instante. Apesar do otimismo face ao cumprimento do plano, António Sales deixa o aviso: “É-nos difícil dizer, com certeza, quando terminará a primeira fase.” Prevê-se que a segunda fase termine até ao fim de junho e que conte com 2,7 milhões de portugueses vacinados contra a covid-19.
Textos originalmente publicados no Expresso de 11 de dezembro de 2020
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