Desejo para 2023? Que a oncologia não exclua ninguém

“A tutela deve dar às instituições a oportunidade de fazerem uma gestão de proximidade”, aponta Luís Costa
Num cenário agravado pela pandemia e pelas consequências indiretas da guerra, Portugal, à semelhança do que acontece com muitos outros países — sobretudo na Europa —, tem sentido o embate do novo contexto socioeconómico, que teima em entranhar-se. Também na saúde, nomeadamente na área da oncologia, os desafios acentuam-se e o número de novos casos de cancro em estado mais avançado não pára de crescer. O volume de atos médicos requeridos “está a aumentar enormemente — no público e no privado — e a nossa capacidade de resposta está no limite”, sublinha Luís Costa, diretor do serviço de oncologia do Hospital de Santa Maria, na reunião de curadores do “Tenho Cancro. E Depois?”. Mas esta situação não é nova.
Já antes da pandemia o sistema de saúde apresentava lacunas consideráveis, e o que se vê é principalmente o agravamento de dois aspetos: por um lado, a falta de recursos humanos para conseguir chegar a todos os portugueses que precisam de cuidados e, por outro, a exaustão dos profissionais de saúde. Há uma “tendência preocupante”, refere o novo presidente do IPO do Porto, Júlio Oliveira, que é a diminuição da disponibilidade dos profissionais que tratam o cancro e que estará intimamente relacionada com o cansaço pandémico experienciado, mas também com o facto de estes “quererem ter mais qualidade de vida”, explica. Além do cansaço relatado pelos profissionais, existe a desvalorização que muitos dizem sentir na pele.
Para colmatar esta fonte de tensão e diminuir as listas de espera, Luís Costa sugere que em 2023 seja oferecida mais autonomia às instituições — dos hospitais aos centros de saúde —, para que, em primeiro lugar, os profissionais ganhem mais voz e por isso se sintam mais motivados para continuar e, em segundo, as instituições consigam acelerar a resolução de problemas que só quem está no terreno é que conhece. “É precisa mais autonomia de gestão de recursos humanos e de gestão de estruturas físicas”, insiste Luís Costa, sendo por isso importante responsabilizar, a posteriori, as estruturas pelas decisões que tomam e pelos resultados obtidos como consequência dessa mesma autonomia.
Novos rastreios: próstata, pulmão e estômago
O país tem metas claras e ambiciosas, basta olhar para o novo Plano Nacional contra o Cancro — divulgado em julho —, que, ao colocar o cidadão no centro, definiu os seus objetivos específicos em função de quatro pilares de ação estratégica: o da prevenção, o da deteção precoce, o do diagnóstico e tratamento e, por fim, o pilar dos sobreviventes. Mas estará este à altura de fazer frente às necessidades mais prementes da oncologia nacional? A maioria acredita que sim, mas também é consensual que o que realmente urge é a sua implementação, pois até agora ninguém sabe quando é que este documento sairá do papel e se tornará — finalmente — uma realidade.
No início deste mês o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, anunciou para 2023 o alargamento do programa de rastreios oncológicos aos cancros do pulmão, da próstata e do estômago através de projetos-piloto. Não obstante, mesmo que esta seja uma iniciativa promissora, há várias questões que devem ser analisadas, pois delas depende o sucesso dos resultados. Para Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, é importante tentar perceber qual é a fundamentação científica que está por detrás destes rastreios, qual a periodicidade e quais os testes que devem ser feitos. “Devemos fazer rastreios tendo por base evidência científica, e não por decisão política”, lembra o especialista. É necessário também saber se os rastreios têm custo efetivo, porque não basta rastrear, há que, posteriormente, dar resposta e acompanhar os casos positivos que são detetados nos rastreios. De recordar que atualmente já existe essa dificuldade de acompanhamento no caso dos cidadãos que dão positivo no exame de sangue oculto nas fezes, realizado no âmbito do rastreio para o cancro colorretal.
Mais com menos
Outro elemento que dificultará a ação da oncologia no próximo ano e que ainda está por resolver é o facto de os cuidados de saúde primários — responsáveis por muitos rastreios e principal porta de entrada dos doentes no SNS — ainda se encontrarem debilitados e sem capacidade para responder a todos os cidadãos, embora o número de consultas esteja praticamente igual ao período pré-pandémico. “Com menos pessoas estamos a fazer mais consultas do que antes”, explica Nuno Jacinto.
A estas preocupações que transitam para 2023 junta-se o facto de não haver ainda uma rede de centros de referenciação explícita — apesar de esta estar contemplada no novo plano nacional de combate ao cancro — que permita informar os doentes sobre onde se devem dirigir tendo em conta a sua neoplasia. Desburocratizar os processos, continuar a investir na prevenção primária e literacia, assim como num melhor registo e gestão de dados, estão no topo das prioridades identificadas pelos especialistas presentes na última reunião de curadores, que pretendeu fazer um balanço de 2022, traçando um possível cenário futuro onde o objetivo primordial é que ninguém fique de fora.
Reforçar a rede de paliativos
Portugal não prima pela equidade no acesso aos tratamentos contra o cancro. Segundo os curadores do Tenho Cancro. E Depois?, ser doente no Alentejo não é o mesmo que ser doente em Lisboa, e isso também se estende aos cuidados paliativos um pouco por todo o país. Segundo a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), 70 mil portugueses não têm acesso aos mesmos. Cada vez mais aparecem doentes que precisam deste tipo de tratamentos — uma vez que estão a chegar demasiado tarde às instituições e os seus cancros estão mais avançados —, e isso é um problema que tem vindo a agravar-se não só no público como no privado. “Lá porque as pessoas não se curam, não podem ser encaradas como pessoas de segunda”, defende Isabel Galriça Neto, diretora da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz, acrescentando que há profissionais de saúde “a viver com níveis de stresse semelhantes aos que se vivem nas trincheiras”, na tentativa de darem resposta aos inúmeros pedidos que lhes chegam. Num comunicado lançado a 14 de dezembro, a APCP diz que o número de equipas existentes é manifestamente reduzido para as necessidades que o país tem nesta área, sobretudo a nível comunitário, pedindo ao Governo urgência na priorização efetiva do investimento em cuidados paliativos. “Não podemos continuar a fazer de conta que estas pessoas não existem”, conclui Isabel Galriça Neto.
Frases que marcaram a reunião de curadores do “Tenho Cancro. E depois?”
“Perdeu-se o percurso do doente do diagnóstico ao tratamento, e isto tem que voltar a ser instituído”
António Medina Almeida
Diretor do Serviço de Hematologia do Hospital da Luz
“É preciso encarar os cuidados paliativos como prioridade, porque temos uma dificuldade enorme no acesso”
José Mário Mariz
Médico onco-hematologista do IPO do Porto
“Todos os doentes têm que ter acesso à melhor terapêutica, e isso, neste momento, não está a acontecer”
Vítor Neves
Presidente da Europacolon Portugal
“Diagnosticar precocemente não só é melhor para o cidadão como é mais rentável para o sistema de saúde”
Júlio Oliveira
Presidente do IPO do Porto
TENHO CANCRO. E DEPOIS?
A SIC Notícias e o Expresso lançaram um site — www.tenhocancroedepois.pt — dedicado ao cancro. O objetivo da plataforma passa por recolher a opinião de médicos, doentes e especialistas sobre os desafios de uma doença que afeta cada vez mais pessoas. O projeto tem o apoio da Médis e da Novartis, além da colaboração da Liga Portuguesa Contra o Cancro e da Sociedade Portuguesa de Oncologia.
Textos originalmente publicados no Expresso de 23 de dezembro de 2022
23 dezembro 2022
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