Roleta russa do cancro inquieta os portugueses

60 mil novos casos são detetados todos os anos. Nas mulheres, o cancro da mama é o mais prevalente
Getty Images
As doenças oncológicas estão no centro das inquietações dos cidadãos quando se fala de saúde. À semelhança dos estudos anteriores que a GfK realizou para o Expresso sobre a perceção da população relativamente à temática do cancro, comprova-se que esta continua a ser a doença, em 2023, que mais receio gera (64%). Já a covid-19 — que em 2020 se encontrava em segundo lugar — cai para o fim da lista de preocupações (19%) e é equiparada à gripe (12%).
O relatório mostra que 62% já tiveram alguém da sua família com cancro e 37% já tiveram alguém do seu círculo de relações com esta doença. Além disso, quando analisamos ao detalhe, vemos que 22% dos inquiridos já passaram por estas duas situações. Ao ser uma doença “democrática”, há a consciência de que tal como acontece na roleta russa, o azar pode calhar a qualquer um. “O cancro é a prioridade porque as pessoas têm medo, uma vez que sentem que amanhã podem ser elas”, explica José Dinis, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas.
No entanto, o aparecimento de um diagnóstico não pode ser deixado nas mãos do acaso e apostar em continuar a alimentar a população de conhecimento é a chave para a prevenção, sendo que o estudo mostra que apenas 6% das pessoas consideram estar bem informadas sobre este assunto. “É interessante verificar que nos cidadãos que já tiveram cancro, o nível de literacia é maior (15%)”, destaca Luís Costa, diretor do serviço de oncologia do Hospital de Santa Maria, acrescentado que é “compreensível” que os mais jovens, não estando tão expostos à doença, tenham um interesse mais limitado.
O tabaco é o principal fator de risco apontado pelos cidadãos para o aparecimento de cancro (77%). Seguem-se a hereditariedade (56%) e o sol (53%). Os excessos alimentares (nomeadamente a ingestão de açúcar) surgem no fim da lista, embora a ciência diga que uma alimentação equilibrada — baseada na dieta mediterrânica — é eficaz na prevenção da doença. “Aumentamos a literacia comunicando junto da população, dos profissionais e interagindo com a tutela”, diz Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Comunicação “clara e permanente”, como aconteceu na pandemia, é a solução apresentada pelo especialista.
Nova liderança, melhores resultados nos rastreios?
Com a decisão tomada por Fernando Araújo, diretor-executivo do SNS, de acabar com as Administrações Regionais de Saúde (ARS), pensa-se que os rastreios que antes eram geridos de forma independente por cada uma das ARS, sejam futuramente uniformizados pela nova direção executiva, o que deverá contribuir para a mitigação da falta de equidade no acesso. Mesmo que ainda não se saiba ao certo como é que tudo isto irá ser executado, há esperança entre os profissionais de que os rastreios de base populacional comecem a melhorar os seus resultados. “Penso que haverá uma evolução positiva”, defende José Dinis, recordando que o objetivo do país é “convidar 90% da população a fazer os rastreios”. Mesmo que o estudo mostre que 84% destacam os rastreios como principal forma de prevenção do cancro, há muitos que não aderem aos mesmos.
Olhando apenas para o rastreio do cancro colorretal (terceiro tumor mais temido), Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal, lembra que se este fosse bem implementado, 38% das pessoas que têm a doença não a desenvolveriam. “É um rastreio prático e barato, que só necessita de ser organizado”, diz. Sobre o do cancro gástrico, que agora começa a dar os primeiros passos e que é um dos novos a implementar em breve (rastreios de pulmão e próstata completam a lista de novidades), Vítor Neves deseja que não se repita para este rastreio “tudo aquilo que de mau já se fez para o do cancro colorretal”.
A Europacolon abraçou, em 2023, um projeto europeu que levou os rastreios à população afrodescendente através de uma unidade móvel que se dirigiu até à Cova da Moura, Casal da Mira e Alfornelos. “Há a ideia de que estas pessoas fogem do rastreio, mas o que verificámos foi o contrário”, conta Vítor Neves, para destacar a recetividade por parte destes moradores de bairros mais desfavorecidos e que, habitualmente, estão mais longe da saúde, mostra que o problema base está na organização e na forma de chegar às pessoas. “Os portugueses têm que saber os benefícios que o rastreio traz porque, se souberem, mais depressa irão aderir”, conclui.
Só 3% sentiu dificuldades no acesso
Os casos de cancro têm aumentado todos os anos, não só em Portugal como a nível global. Além disso, o estudo indica que a maioria da população que já teve ou tem cancro foi/está a ser acompanhada no sector público (82% e 95%, respetivamente) e só 3% conta que sentiu dificuldade em aceder ao sistema de saúde na parte oncológica. Nuno Jacinto diz que estes números o deixam “satisfeito”, porque demonstram a preocupação do país com o cancro, garantindo que “para outras áreas certamente que os números não serão tão bons”.
O número de consultas externas do IPO de Coimbra, no período de 2019-2022, caracterizou-se por um aumento constante, registando uma variação positiva de cerca de 35%, tendo sido realizadas mais 44.143 consultas, comparando o ano de 2022 com o ano de 2019. “O IPO de Coimbra tem pautado por uma postura de proximidade com as instituições do SNS da região Centro, dos Cuidados de Saúde Primários e Hospitalares, de forma a garantir o adequado acompanhamento dos seus doentes ao longo do seu percurso clínico”, explica a administração deste IPO.
Cancro hereditário representa 10% de todos os cancros
Apesar de, no estudo, 71% já terem ouvido falar em cancro hereditário e 61% em testes genéticos, o caminho para a evolução desta parte da oncologia está repleto de barreiras.
A grande lacuna identificada por Tamara Milagre, presidente da Evita, é a falta de dados. “Não temos dados sobre o número dos doentes com cancro hereditário e ainda menos dados sobre o número de portadores de alterações genéticas com predisposição para cancro hereditário”, garante. A verdade é que o Registo Oncológico Nacional não discrimina entre este tipo de cancros e aqueles que são considerados esporádicos (que não são de origem hereditária). Importante explicar que, apesar de todos os cancros serem genéticos, nem todos são hereditários.
Os tempos de espera “inaceitáveis” para fazer o aconselhamento genético (que deve preceder o teste genético) é outra das falhas a resolver. A demora “para cirurgias preventivas já ultrapassaram de longe o aceitável, agravado pela pandemia e o respetivo tsunami de diagnósticos tardios”, explica Tamara Milagre.
Mais ensaios, mais economia
63% já ouviram falar em ensaios clínicos e 53% estariam dispostos a participar. Para José Dinis, o país devia investir cada vez mais nesta área, encarando os ensaios clínicos como uma forma de “melhorar a economia e, com o dinheiro gerado, investir no SNS”. O oncologista lembra também que esta é uma forma eficaz de reter talento.
Já Luís Costa põe a tónica na comunicação, ao defender que seria muito útil “dar exemplos de ensaios clínicos cujos resultados mudaram a história de algumas doenças”. Por outro lado, é muito importante esclarecer que num ensaio clínico “a atenção na segurança para o doente é muito elevada, mais do que na prática clínica habitual”, conclui ao partilhar a sua estratégia para melhorar a situação do país no que a este domínio diz respeito.
Segundo o estudo:
Na sondagem “Cancro: perceções da população portuguesa”, o da mama é o que mais preocupa a população (31%), seguido do cancro do pulmão (18%) e do cólon e reto (15%).
53%
estariam dispostos a participar num ensaio clínico caso reunissem os critérios necessários, enquanto que 63% já ouviram falar neles. Significa que, ao contrário do que acontecia no passado — os portugueses mostravam receio em relação a esta prática —, a população confia cada vez mais nos avanços da medicina e na segurança que tem que existir sempre que se leva a cabo um ensaio deste tipo
37%
consideram que existe uma estratégia nacional para fazer frente ao cancro. A percentagem sobe consideravelmente — atingindo os 54% — quando falamos de pessoas que já sofreram ou que sofrem da doença. Apesar da proposta para um novo Plano Nacional para as Doenças Oncológicas ter sido posta em consulta pública, ainda não existe um documento oficial com a estratégia definitiva
71%
já ouviram falar em cancro hereditário e 61% já ouviram falar em testes genéticos. Estes números revelam que o grau de consciência sobre esta temática aumentou entre a população, mesmo que o cancro hereditário corresponda a apenas 10% de todos os casos de cancro do país. Estes dados podem ainda melhorar muito se aumentar a literacia das pessoas e dos profissionais através de uma melhor comunicação
Cidadãos combatem o desconhecimento
Pesquisa. 52% dos entrevistados procuraram sobre cancro e 48% pesquisaram sobre os sintomas do cancro. Os sites públicos e privados com informação médica e os motores de busca ocupam o pódio dos meios de informação privilegiados pelos portugueses para a obtenção de informação sobre esta temática. No top 3 do ranking de temas sobre o cancro que mais preocupam os portugueses estão os tratamentos, os sintomas e as tipologias de tumor. 15% dos que tiveram cancro consideram-se bem informados.
TENHO CANCRO. E DEPOIS?
A SIC Notícias e o Expresso lançaram um site - www.tenhocancroedepois.pt - dedicado ao cancro. Ao longo do ano, a plataforma recolherá aopinião de médicos, doentes e especialistas sobre os desafios de uma doença que afeta cada vez mais pessoas. O projeto tem o apoio da Multicare e da Novartis, além da colaboração da Liga Portuguesa contra o Cancro e da Sociedade Portuguesa de Oncologia
Textos originalmente publicados no Expresso de 3 de novembro de 2023
03 novembro 2023
-
Nasce nova plataforma que quer promover o crescimento da investigação clínica nacional
A Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica apresenta a Portugal Clinical Studies, uma nova plataforma que visa simplificar e agilizar os processos inerentes aos estudos clínicos nacionais.03.09.2025 às 12h23
-
Combater o cancro: cientistas descobrem novas formas de reprogramar células
“Novo conhecimento pode aproximar-nos de imunoterapias mais eficazes, contribuindo para reduzir a probabilidade de falha terapêutica e acelerar o desenvolvimento de novas estratégias contra o cancro.”02.09.2025 às 14h13
-
Verão com prevenção: conheça a bula do sol
Inspirada no conceito de uma bula médica, que se encontra em qualquer medicamento, a Liga Portuguesa Contra o Cancro convida os portugueses a tratarem o sol com os cuidados que este exige e lança a Bula do Sol, um guia prático, gratuito e acessível.26.08.2025 às 12h13
- 1:35
Cancro da pele: rastreios gratuitos e campanha de sensibilização nas praias portuguesas
Na manhã deste sábado, a campanha esteve em Sesimbra, no distrito de Setúbal.16.08.2025 às 14h58
-
Nova descoberta promete simplificar deteção de cancro da bexiga avançado
A deteção do açúcar nLc4 numa análise à urina apenas será útil para identificar de forma rápida os casos em que o tumor "já invadiu o músculo à volta da bexiga".15.08.2025 às 7h30
-
IA reduz eficiência de médicos na deteção de cancro do cólon, revela estudo
Um estudo realizado na Polónia, hoje publicado, indica que a introdução da inteligência artificial (IA) parece estar a tornar os médicos menos eficientes na deteção de cancros do cólon.13.08.2025 às 6h49
E Depois