Atrasos consecutivos comprometem futuro da oncologia

Cancros da mama, colorretal, próstata e pulmão são os mais prevalentes, sendo que a taxa de novos casos é superior nos distritos do litoral
José Fernandes
O aumento de casos de cancro é uma realidade global, difícil de travar, que põe os países e os seus sistemas de saúde à prova. Para perceber o panorama português basta olhar para os números: só no primeiro semestre de 2023, 19% dos doentes com cancro a precisar de cirurgia foram operados fora do tempo previsto. Esta é uma das conclusões da análise feita pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), divulgada este mês. Sabe-se também que a 30 de junho de 2023 aguardavam cirurgia 7048 doentes, 18% dos quais já com espera superior aos tempos estipulados.
Apesar dos números, Miguel Abreu, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, lembra que o tratamento do cancro é “multimodal e multidisciplinar” e que os atrasos não se verificam apenas nas cirurgias. “Quando analisados os tempos até à primeira consulta no caso de suspeita de cancro, 60% das consultas foram feitas fora do tempo”, refere. Estes dados acabam por preocupar todos os que lidam com esta doença diariamente, visto que, quando se fala em neoplasias malignas, o tempo é fulcral para um melhor prognóstico. “Com este relatório, temos de assumir que o SNS não está a cumprir com a sua missão, não conseguindo prestar cuidados de qualidade à população portuguesa”, afirma o oncologista.
Para amenizar esta lacuna, diz ser urgente reestruturar todo o sistema, porque “a avaliação da ERS apenas mostra a ponta de um grande icebergue de incumprimentos do SNS”. A primeira medida a ser tomada, segundo o próprio, seria dotar estas entidades reguladoras de uma estrutura que pudesse reconhecer a realidade global, e não pequenos fragmentos.
No IPO de Lisboa, a presidente, Eva Falcão, conta que a mediana dos tempos de espera tem sofrido uma melhoria face a 2019, apesar do “enorme aumento” de entradas em Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC). Acrescenta que o número de pacientes operados tem crescido, sendo que em 2023 foram operados mais 712 doentes face a 2019 (+9,2%) e mais 364 face a 2022 (+5,0%), o que revela “o crescente esforço de resposta”. As soluções que o IPO de Lisboa tem executado passam pela reorganização de processos de trabalho, “monitorizando de perto as listas de inscritos e os tempos de resposta, de forma a poder introduzir as alterações necessárias nos processos, potenciando a capacidade instalada”, explica Eva Falcão.
A pandemia piorou a situação da oncologia. Hoje é possível dizê-lo com mais certeza, porque a afirmação não se baseia “só” na perceção dos especialistas, está igualmente explícita no Registo Oncológico Nacional (RON), que fotografa — ao detalhe — a realidade vivida à época. O documento é referente a 2020, ano em que houve um “impacto negativo na prestação de cuidados e na investigação sobre o cancro, provocando atrasos no rastreio, no diagnóstico e no tratamento”, esclarece Maria José Bento, coordenadora do RON. É por isso que deixa o alerta: esta falta de diagnóstico no período pandémico irá levar, na análise dos próximos anos, ao “aumento da morbilidade e da mortalidade por cancro”.
Este incremento pode ainda não estar espelhado nos dados, mas verifica-se tanto no público como no privado. “Estamos muito sobrecarregados e, como não houve aumento de recursos humanos, temos mais atrasos nas diferentes etapas”, corrobora Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama da Fundação Champalimaud. E enfatiza a utilidade de os dados serem conhecidos num período menor de tempo, sendo que o que está previsto atualmente é que o intervalo seja de três anos (dados de 2020 só foram conhecidos em 2023). “Se conseguíssemos reduzir isto para metade, já nos permitiria tomar mais decisões necessárias.” Não obstante, deixa a ressalva de que o que se vê neste RON “não é nada que não se soubesse que iria acontecer: menos diagnósticos em 2020, estádios mais avançados e piores sobrevidas para os próximos anos”.
Prioridades em 2024
Reter profissionais no sistema de saúde para dar resposta às necessidades da população no que ao cancro diz respeito é o desafio mais verbalizado pelos especialistas. A possibilidade de fazer investigação é, segundo Júlio Oliveira, um fator de atratividade para “reter o nosso capital humano”. Mas, para o presidente do IPO do Porto, há algo que urge ser feito para mitigar o aumento de casos: apostar na prevenção primária, ou seja, na promoção de estilos de vida saudáveis. “Tem que haver uma luta sem tréguas” contra os fatores de risco que estão identificados, como o consumo de tabaco, que é o “principal fator que mais anos de vida rouba à sociedade”.
O acesso a medicamentos, a existência de equidade e a criação de centros de referência para que os doentes sejam tratados adequadamente durante a sua jornada são mais algumas prioridades identificadas, que representam desafios aos quais a execução de uma estratégia nacional precisa responder.
Incumprimentos
9014
utentes estavam à espera da primeira consulta no final do primeiro semestre de 2023, sendo que o tempo de espera já tinha sido ultrapassado em 73% dos doentes que se encontravam a aguardar por este serviço
8,13%
foi a percentagem a mais de doentes que entraram em Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC) face a 2019, no IPO de Lisboa. Este aumento corresponde a mais 676 doentes em relação ao ano anterior à pandemia
52.723
foram os novos casos registados em 2020, menos 9% do que em 2019. De recordar que as previsões para o ano em que a pandemia surgiu apontavam para que se registassem entre 60 e 65 mil novos casos
O PROJETO ESTE ANO
O que esperar do TCED em 2024
O Tenho Cancro. E Depois? (TCED) regressa para mais um ano que se adivinha decisivo na recuperação da oncologia do país. A nova estratégia nacional de combate ao cancro até 2030 já foi divulgada e está alinhada com a Europa, assente em pilares fundamentais: prevenção, deteção precoce, diagnóstico e tratamento e, por último, o pilar dos sobreviventes. Recuperar tratamentos e diagnósticos para combater o aumento de casos — que já é uma realidade —, trabalhar rumo à equidade no acesso, reter profissionais e introduzir novos projetos-piloto para a implementação dos rastreios do pulmão, estômago e próstata são algumas das prioridades traçadas para este ano. O TCED estará atento a todo o processo de perto e contará — uma vez mais — com o conselho de curadores e especialistas das mais diversas áreas da oncologia, que aportam conhecimento e rigor científico ao projeto. Acompanhe os eventos, artigos, reportagens televisivas e diferentes rubricas a que poderá ter acesso ao longo de todo o ano na antena da SIC Notícias, no jornal Expresso e em tenhocancroedepois.pt.
Textos originalmente publicados no Expresso de 26 de janeiro de 2024
26 janeiro 2024
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