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"Quero o meu trabalho e a minha vida de volta". Os desabafos de um artista impedido de pisar os palcos

Os medos, as incertezas e as perspetivas de futuro de um ator e fadista que se viu obrigado a deixar de fazer aquilo que mais gosta.

"Quero o meu trabalho e a minha vida de volta". Os desabafos de um artista impedido de pisar os palcos

8 de março foi o dia em que a vida de Rui Vaz mudou. Fadista e ator, nesse domingo pisou pela última vez o palco do teatro onde trabalhava. Tinham passado seis dias desde o anúncio dos primeiros casos de Covid-19 em Portugal.

Em fevereiro, o artista de 28 anos estava a fazer a peça de teatro "A Severa - O Musical", de Filipe La Féria, no Teatro Politeama, em Lisboa.

"Foi um dos maiores sucessos do Filipe La Féria, esteve um ano em cena. A meio de fevereiro fomos para a Figueira da Foz em tournée, e regressámos ao Teatro Politeama onde estivemos até ao dia 8 de março. Tive a sorte de interpretar um personagem muito popular que foi o Timpanas e que fez algum sucesso com o público", conta à SIC Notícias.

O "Timpanas", interpretado por Rui Vaz, ao centro a tocar guitarra portuguesa

"Fiquei sem trabalho assim que começou esta história do coronavírus"

A peça esteve em cena durante exatamente um ano e acabou no mesmo dia em que tinha começado, em 2019

"Fiquei sem trabalho assim que começou esta história do coronavírus. Assim que acabei o musical, no dia 8 de março. No dia 12 vim para Tavira porque já não tinha emprego. A casa de fados onde cantava em Alfama acabou por também fechar e por isso mesmo é que tive também de regressar ao Algarve, primeiro para estar perto da família e não ficar em Lisboa sozinho e depois por uma questão económica", conta.

"Como é que alguém consegue subsistir com um subsídio de 100 euros por mês?"

Questionado sobre se está a receber algum apoio, Rui Vaz diz que recebe um apoio da Segurança Social mas que é "demasiado curto para as necessidades". O fadista diz que nos últimos meses tem contado com o apoio financeiro da família para conseguir pagar as despesas fixas que tem todos os meses.

"Não estamos isentos de pagar contribuições. Eu recebo cento e poucos euros e pago 100 euros de Segurança Social. A questão que eu ponho aqui é: como é que alguém consegue subsistir com um subsídio de 100 euros por mês? Ter que pagar contas e ainda que pagar contribuições e ninguém aponta soluções para nada".

Rui Vaz no Teatro Sá da Bandeira, Porto

Com as casas de fado fechadas e o mesmo com os teatros, as oportunidades de trabalho são nulas. A proibição dos festivais de verão também afetou Rui Vaz que teve 15 espetáculos cancelados. Conta que normalmente, é com o dinheiro que faz no verão, em festas, romarias e festivais, que consegue subsistência para o inverno que costuma ser mais rigoroso.

"Há muitos artistas com fome neste momento e ninguém olha para eles"

O ator deixa algumas críticas aos apoios atribuídos pelo Museu do Fado. "Resolveram dar o apoio a casas de fado, efetivamente a casas de fado que eles consideram mais emblemáticas e artistas que eles consideram mais emblemáticos", refere.

Rui Vaz afirma conhecer muitas situações de colegas de profissão que estão atualmente a passar fome. Diz que graças à ajuda da família não tem precisado de apoios como o do Museu do Fado, mas muitos colegas do fado estão a "passar por grandes dificuldades e sem sequer terem o que comer".

Dar música à pandemia

Nos últimos dois meses, o artista não tem recebido propostas de trabalho. Mas para combater o isolamento social, teve a ideia, juntamente com o maestro Mário Rui Teixeira, de fazer uma versão da música "Lavadeiras de Caneças", um clássico português.

"A ideia surgiu com esta história de estarmos em casa e sem nada para fazer. Quisemos fazer alguma coisa de produtivo. E conseguirmos gravar cada um em sua casa, eu a voz e o maestro Mário Rui gravou todos os instrumentos que são tocados ao vivo", conta à SIC Notícias.

SN: Não pisa um palco há dois meses. O que é que sente quando pensa nisso?

RV: Tenho muitas saudades de cantar, tenho muitas saudades de representar, tenho muitas saudades do público.

SN: Sente falta principalmente desse contacto com o público?

RV: Sinto. Eu sou muito ligado ao publico e sou aquele tipo de artista que espera no final dos concertos pelas pessoa. Eu defendo e acredito que são eles que nos dão de comer, são eles que nos pagam para estarmos ali, portanto eles merecem não 100% de nós mas 200%.

Rui Vaz começou a cantar fado em 2008. Quatro anos depois, editou o primeiro álbum, "Recorda-te de Mim". Seguiram-se mais dois: "Fado em Prelúdio" (2016) e "Rui Vaz canta Florência" (2018). Pisou pela primeira vez as tábuas de um teatro enquanto ator em 2016. Desde então já participou em várias peças.

"Quero o meu trabalho e a minha vida de volta"

Apesar de todas os constrangimentos provocados pelo novo coronavírus, o artista tem planos para o verão. Conta que espera, juntamente com alguns colegas, fazer uma peça de teatro ao ar livre e levá-la a vários pontos do país.

"Gostávamos de fazer uma espécie de tournée pelo país, com várias sessões diárias, ao ar livre e com lugares limitados, obviamente cumprindo todas as normas de distanciamento e segurança que a DGS impõe".

Rui Vaz diz que de momento faltam apoios institucionais para poderem avançar com o projeto. Conta que tanto ele como colegas do teatro querem muito voltar à normalidade mas estão seguros de que a arte em geral tem de readaptar e têm de ser criadas condições para que os artistas também o façam.

"Esta pandemia tirou-me aquilo que mais gosto mas também me deu noção de que é possível viver com pouco"

Em modo de introspeção, enumera aquilo que lhe foi roubado por causa da pandemia. "O meu trabalho. O meu dinheiro. A possibilidade de viajar. Estar perto dos meus amigos".

Mas não foram só perdas. Rui Vaz diz que toda esta situação pela qual o mundo está a passar fez com que entendesse que não precisa de muita coisa para ser feliz. "Vim para o Algarve com uma mala de roupa para passar 15 dias e já cá estou há dois meses, não é? Portanto não preciso de tantos bens materiais para ter uma vida aceitável, agradável. Não preciso de tanta roupa, não preciso de grandes coisas. Realmente é possível viver com pouco e nós vivemos de facto numa sociedade de consumo. É possível ser-se feliz com pouco".