Como definir "Os Fabelmans", de Steven Spielberg, a partir das principais linhas de força da sua narrativa? Sugiro cinco alíneas:
— estamos perante um exercício de memória em que a herança do passado familiar (do próprio realizador, como é sabido) se refaz através das leis do grande melodrama clássico;
— essa memória, sendo familiar e privada, cruza-se com o próprio património de Hollywood, nessa medida celebrando uma ideia de cinema que tem tanto de espiritual como de mágico;
— as citações que daí decorrem (incluindo a referência tutelar de "O Maior Espectáculo do Mundo", produção de 1952 assinada por Cecil B. DeMille) afirmam a possibilidade de uma relação inventiva com o classicismo;
— nenhuma das suas evocações é meramente descritiva ou banalmente nostálgica, surgindo enraizadas num dos valores mais radicais que o cinema sempre conteve: o conceito dinâmico, emocional e intelectual, concreto e abstracto, de personagem;
— a valorização de cada personagem envolve a primazia do actor/actriz como elemento fulcral de qualquer narrativa cinematográfica [veja-se o video sobre a rodagem] .
Entretanto, ficámos a saber que os dez mil membros votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood consideram que nada disso justifica que um filme como "Os Fabelmans" tenha qualquer reconhecimento nos Óscares.
Em troca de quê? Da exaltação de um filme como "Tudo em Toda a Parte ao Mesmo Tempo". Podemos considerar que esse é um filme notável ou apenas um mediocridade derivada dos clichés "surreais" dos videojogos (é o meu caso). Mas não é esse filme — nem os Óscares que ganhou — que está em causa. É apenas o facto de, ignorando "Os Fabelmans", Hollywood cortar alguns dos laços mais fortes que sempre soube manter com a nobreza artística e humana do seu próprio património — para um cinéfilo, é um dia triste.